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    Eduardo Giannetti

    A terceira onda

    10/10/2014 02h00

    Imagine um montículo delgado de areia na praia. Se você deixar cair um único grão de areia em seu cume, explica o físico dinamarquês Per Bak, três coisas podem ocorrer: ele pode repousar no ponto onde caiu; deslizar suavemente pela encosta ou desencadear uma avalanche que provoca o colapso do montículo.

    O exemplo ilustra como sistemas de aparência estável e robusta, tanto na natureza como nas relações humanas, podem revelar-se singularmente frágeis. Sob a placidez do equilíbrio, eles estão sujeitos à ocorrência de súbitas, inesperadas e, por vezes, explosivas mudanças.

    A ruptura é o efeito da ação conjunta de duas coisas: caos e complexidade. O caos denota a alta sensibilidade do sistema a mínimas variações nas condições iniciais (como no conhecido "efeito borboleta"). A complexidade remete ao modo como as partes do sistema, uma vez fora do repouso, passam a interagir de forma caprichosa e cumulativa até um novo equilíbrio.

    Tudo isso me faz pensar na política brasileira. Duas súbitas e inesperadas ondas de manifestação popular recentes –verdadeiras avalanches que varreram a cena e pegaram os mais argutos analistas de surpresa– parecem sugerir que a solidez aparente do nosso atual sistema de poder, assentado na "velha política" fisiológica e corrupta, esconde na verdade enorme fragilidade.

    A primeira onda foram as manifestações de junho. Na superfície, a calmaria política de uma sociedade civil anestesiada. Mas bastou um "grão de areia" –os 20 centavos– para deflagrar um gigantesco movimento de âmbito nacional. O efeito foi uma explosão coletiva de insatisfação popular que colocou em xeque toda a política institucionalizada e deixou o nosso patronato político aturdido e acuado.

    A segunda foi a ascensão meteórica de Marina. Quando tudo parecia indicar a sexta reprise do embate PT x PSDB no primeiro turno, o trágico acidente de Eduardo Campos foi o estopim de uma espantosa e imprevista reviravolta. Por algumas semanas, Marina encarnou a promessa de ruptura e a esperança de genuína mudança na ordem política.

    A virulência dos ataques a ela é índice da ameaça que representou.

    Faltou pouco. Assim como se ergueram as duas ondas refluíram sob o impacto de condutas violentas –a infiltração black bloc e o marketing selvagem– deixando um halo de frustração e perplexidade.

    Fatos isolados? Creio que não. Desconfio que algo oculto aos olhos humanos esteja em gestação nas entranhas da sociedade. Talvez o Brasil esteja grávido: no limiar de um parto temporão de cidadania. Depois de junho e do primeiro turno, quem ousará prever o grão de areia e a amplitude da terceira onda?

    Eduardo Giannetti

    Escreveu até dezembro de 2014

    É formado em economia e em ciências sociais pela USP e PhD em Economia pela Universidade de Cambridge. É autor de artigos e livros, entre eles "Vícios privados, benefícios públicos?"

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