• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 08:04:50 -03
    Elio Gaspari

    Uma fábula da modernidade

    22/04/2015 02h00

    O grande poeta Cacaso (1944-1987) fez um versinho que pareceu datado e revelou-se eterno:

    "Ficou moderno o Brasil,
    ficou moderno o milagre.
    Água já não vira vinho.
    vira direto vinagre."

    A modernidade do século XXI tem os velhos toques de arquitetura futurista, mais privataria e terceirizações. Somando-se a isso, cria-se uma boa página da internet e, tchan, o futuro chegou.

    Quem passa pela avenida Presidente Vargas, no Rio, vê um lindo prédio branco. É a Biblioteca Parque, do governo do Estado. Foi uma joia da coroa da campanha do candidato Pezão, que prometeu construir mais onze. Inaugurada em 2013, foi entregue à empresa Instituto de Desenvolvimento e Gestão, o IDG. Funcionava ali outra biblioteca pública, resultado de uma iniciativa de D. Pedro II. Às vezes ia bem, depois ia mal. Darcy Ribeiro remodelou-a, mas no governo Sérgio Cabral decidiu-se passar o Rio a limpo. O velho prédio foi demolido. No lugar, ergueu-se o outro, moderno e lindo. (Com isso os empreiteiros e fornecedores de serviços faturaram pelo menos R$ 71 milhões.) Com o milagre, a água viraria vinho.

    Virou vinagre. Um ano depois de sua festiva inauguração o IDG resolveu reduzir o horário de atendimento. A instituição funcionava das 10h às 20h. Funcionará das 12h às 18h30 de terça a sexta e não abrirá mais nos fins de semana. A empresa tem seus motivos, pois Pezão lhe deve R$ 10 milhões. Vale notar que o novo horário exclui todos aqueles que trabalham na região e que o IDG acha problemático abri-la no fim de semana. São muitas as grandes cidades brasileiras que não têm bibliotecas abertas aos domingos, mas se o Rio quiser mudar de patamar, não feche a sua.

    Construir ou reformar bibliotecas rende imediatos faturamentos e cerimônias. Mantê-las é outra história, coisa que depende de recursos e servidores dedicados. Pezão tropeçou nessa ponta dessa equação. Em outros casos, piores, caiu-se na primeira, na qual paga-se parte da obra e deixa-se a instituição à matroca. A Biblioteca Nacional de Brasília, construída em 2002 tornou-se um excelente salão de leitura e centro de exposições, mas biblioteca nacional não é. A Biblioteca Pública do Rio Grande do Sul está fechada para reformas há oito anos. A Câmara Cascudo, de Natal, e a Pública de Maceió estão em reformas, fechadas há quatro anos. A biblioteca municipal de Manaus, fechada há três anos, foi ocupada por moradores de rua e depredada em setembro do ano passado. Isso para não se falar do Museu do Ipiranga, fechado desde 2013, com reabertura prevista para 2022. De tempos em tempos a cripta onde deixaram D. Pedro I vira mictório.

    Muito mais importante do que construir novos prédios e contratar administradores privados é cuidar direito do que já existe, com os servidores que lá estão. Uma das Bibliotecas Parque do governo do Rio, logo a da Rocinha, foi apanhada num lance de superfaturamento.

    Numa trapaça da vida, a única biblioteca criada nos últimos meses funcionou, inclusive aos domingos, na carceragem de Curitiba, onde os empreiteiros presos pela Lava Jato compartilharam suas leituras de bordo.

    elio gaspari

    Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024