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    Elio Gaspari

    A desobediência do andar de cima

    26/06/2016 02h01

    Num artigo em que defendeu o mandato de Dilma Rousseff e condenou "a hipocrisia como tradição política", a historiadora Hebe Mattos, da Universidade Federal Fluminense, foi ao século 19 e nele encontrou "um vigoroso processo de desobediência civil por parte da classe senhorial" contra a extinção do tráfico de africanos.

    Em geral, pensa-se que desobediência civil é coisa de pobre. A desobediência civil do andar de cima ajuda a entender o que está acontecendo com a Operação Lava Jato. (Em nenhum momento a professora fez esse paralelo e é possível que nem sequer concorde com ele.) Até hoje só partiram do novo governo defesas cerimoniais da Lava Jato. Tramitam no Congresso lotes de iniciativas destinadas a desossá-la. Aqui e ali, ouve-se: "Onde é que isso vai parar?". José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá não podiam ter sido mais claros nos grampos de Sérgio Machado.

    A professora mostra como a desobediência civil da elite do século 19 dobrou leis e tratados. Em 1823, quando a Inglaterra reconheceu a independência do Brasil, o governo comprometeu-se a extinguir o comércio de escravos trazidos da África. Em tese, os negros trazidos para a terra seriam livres. Entre 1831 e 1851, chegaram ao Brasil cerca de 500 mil africanos contrabandeados. Todas as leis de proteção aos negros foram desossadas, e só em 1888 o Brasil tornou-se o último país americano livre a libertar seus escravos. Assim prevaleceu o atraso.

    Na segunda metade do século 19, ninguém defendia a escravidão. Todo mundo aceitava o fim do cativeiro "desde que". Assim como a escravidão, a corrupção empresarial e política da máquina pública é algo que precisa acabar, "desde que". Desde que não se aceite a colaboração de pessoas presas, diz Renan Calheiros. Desde que uma pessoa possa recorrer em liberdade aos tribunais de Brasília, diz Romero Jucá. Desde que a Lava Jato tenha dia para acabar, diria o doutor Eliseu Padilha, chefe da Casa Civil de Michel Temer.

    No século 19, a desobediência civil do andar de cima preservou a escravidão. No 21, ela tenta preservar o arcabouço que protegeu a corrupção e que agora está ameaçado.

    *

    EREMILDO, O IDIOTA

    Eremildo é um idiota e continua apoiando o governo de Michel Temer, mesmo sem saber por quê.

    O cretino tem uma bicicleta, sabe que as pedaladas fiscais da doutora Dilma tinham um ingrediente de maquiagem contábil e está encantado com a desenvoltura com que Temer pedala, dentro da lei e debaixo de aplausos.

    O governo federal deu um refresco aos Estados que não queriam honrar dívidas já renegociadas e pedalou a conta dando-lhes uma moratória de seis meses, seguida de um desconto decrescente nas prestações. A Viúva deixará de receber pelo menos R$ 50 bilhões.

    Quando disseram a Eremildo que a maior parte da dívida estava com São Paulo, Rio e Minas Gerais, enquanto o Piauí nada devia, ele achou que isso era conversa de petista mentiroso. Era verdade, ele não entendeu, mas conformou-se. Afinal de contas, é um idiota.

    PT DO PARANÁ

    Velhos fundadores do PT viram com uma ponta de satisfação o estouro da rede paranaense onde foi apanhado o ex-ministro Paulo Bernardo.

    Para quem conhece a história do partido, em São Paulo o PT operava numa escala municipal, ora com empresas de ônibus no ABC, ora com lixo e molho de tomate na prefeitura de Ribeirão Preto, comandada por Antonio Palocci. Foi no Paraná que o comissariado conheceu, herdou e aperfeiçoou a máquina arrecadadora do deputado José Janene, compadre de Alberto Youssef e padrinho de alguns diretores da Petrobras.

    O deputado André Vargas, preso desde abril de 2015, começou militando no PT de Londrina, o mesmo de Paulo Bernardo. Era conhecido como "Bocão".

    MESÓCLISE

    Michel Temer devolveu dignidade à mesóclise. Na semana passada, o ministro Teori Zavascki presenteou a plateia do STF com um "atrasá-las-ia".

    IVANA TRUMP

    Não se pode saber como acabará a candidatura de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, mas a sua presença no cenário exige que se preste uma homenagem a Ivana, sua mulher de 1977 a 1992.

    Ao divorciar-se, ela deu um conselho para todas as outras mulheres, de todos os tempos: "Não fique com raiva. Fique com tudo". Estima-se que tenha ficado com US$ 50 milhões e uma boa mesada. Donald nunca disse algo tão inteligente.

    MODO ODEBRECHT

    Um conhecedor da contabilidade de grandes empresas acha que todos os que propagaram a ideia segundo a qual a Odebrecht era um modelo de gestão eficaz e moderna deveriam pedir desculpas ao público. Ela cometeu o maior dos pecados: misturou o caixa um com o caixa dois. Isso bicheiro sério não faz.

    SINAIS DE FUMAÇA

    Aqui e ali percebem-se sinais de que o Ministério Público e a Polícia Federal estão de olho na contabilidade de advogados de personagens apanhados na Lava Jato.

    O SONHO DE CUNHA

    Na véspera da votação de seu destino pela Comissão de Ética, o deputado Eduardo Cunha foi dormir com a garantia de que Tia Eron votaria a seu favor. De lá para cá suas chances de iludir a lâmina diminuíram. Como o direito de sonhar é livre, tudo o que lhe resta é esperar que durante a sessão para discutir o fim de seu mandato não apareçam 257 deputados dispostos a cassá-lo. Em maio, torcendo por Dilma, o comissariado petista fez aposta parecida.

    SE A LAVA JATO NÃO PARAR, PARARÁ O PAÍS

    Desde quando a Lava Jato pegou o primeiro gato gordo das empreiteiras, a turma de desobediência civil tem argumentado que essa operação prejudica a economia do país, a tal "retomada do crescimento".

    Afinal, "com as finanças já arruinadas, com uma dívida pública que vai crescendo a passos agigantados, com as fontes de produção ameaçadas, é preciso que os representantes da nação sejam mais cautelosos." Renan Calheiros? Eliseu Padilha? Não, Domingos Andrade Figueira no dia 9 de maio de 1888, quando a Câmara discutia o projeto de abolição da escravatura. Dias depois a lei foi aprovada, com o voto contrário de um senador e nove deputados. Um deles era o doutor Andrade Figueira.

    Quem achou essa advertência foi a historiadora Keila Grinberg. Ela publicou-a num texto que pode ser encontrado no blog "Conversa de Historiadoras", onde também está o texto da professora Hebe Mattos.

    Em maio de 2015, o doutor Emílio Odebrecht escreveu o seguinte:

    "A corrupção é problema grave e deve ser tratado com respeito à lei e aos princípios do Estado democrático de Direito, mas é fundamental que a energia da nação, particularmente das lideranças, das autoridades e dos meios de comunicação, seja canalizada para o debate do que precisamos fazer para mudar o país. Quem aqui vive quer olhar com otimismo para o futuro -que não podemos esquecer-, sem ficar digerindo o passado e o presente."

    A Odebrecht está negociando os termos de sua colaboração com a Lava Jato.

    elio gaspari

    Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

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