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    Érica Fraga - Erica Fraga

    Por que Marcela Temer está certa sobre estímulos durante a infância

    19/10/2016 02h00

    Divulgação
    Cena do filme "O Começo da Vida" dirigido por Estela Renner
    Cena do filme "O Começo da Vida", dirigido por Estela Renner

    "O amor materno é realmente uma parte importante da economia que não é totalmente reconhecida pela sociedade".

    A frase até combinaria com o discurso feito por Marcela Temer no lançamento do programa "Criança Feliz" há duas semanas, mas foi dita pelo Nobel de Economia James Heckman no documentário "O Começo da Vida", idealizado pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV) e o Instituto Alana.

    A fala da primeira-dama sobre a importância dos estímulos ao desenvolvimento na primeira infância causou alvoroço nas redes sociais. Comentários sérios e piadas versaram sobre a oratória fraca, o vestido caro, a suposta volta do assistencialismo, o nome do programa.

    De forma geral, tudo em sintonia com a inestimável liberdade de expressão.

    Mas surpreende que nada dos acertos de conteúdo tenha merecido debate, dada a urgência do tema para o Brasil.

    Não foi por acaso que o discurso se assemelhou ao de Heckman, que há duas décadas pesquisa as causas das desigualdades entre as pessoas.

    Estudos mostram que, realmente, o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo na primeira infância, ou seja, até os seis anos, costuma determinar o futuro dos indivíduos.

    O fracasso na vida pode, portanto, ser selado muito cedo. O gráfico abaixo ilustra essa desconcertante realidade.

    DESTINO TRAÇADO AOS SEIS ANOS

    Os dados foram cedidos à coluna pelo economista brasileiro Flávio Cunha, da Universidade Rice (nos EUA), e fazem parte de sua pesquisa sobre desenvolvimento infantil.

    As duas linhas mostram a evolução das habilidades cognitivas do nascimento até a adolescência em dois grupos: a de crianças americanas entre as 25% mais pobres e a daquelas entre as 25% mais ricas.

    Chama a atenção que: 1- os pequenos de famílias de baixa renda já larguem em desvantagem; 2- esse hiato aumente muito antes da chegada à escola; 3- a partir de sete anos, a distância que separa os dois grupos fique praticamente estável.

    Uma ótima notícia de estudos recentes é que a reversão de defasagens de aprendizagem na adolescência é até possível. Mas são medidas que custam muito mais em termos de dinheiro e esforço do que investimentos feitos na primeira infância.

    Para se desenvolver bem, a criança pequena precisa ter saúde e alimentação adequada, claro, mas também incentivos como os mencionados por Marcela Temer: conversas, leituras, músicas.

    Estimular os filhos pequenos é privilégio de mães de famílias de renda alta, como a primeira-dama? Majoritariamente, sim.

    Mas precisa ser assim? Definitivamente não, embora os desafios para pais e demais cuidadores de contextos menos favorecidos sejam muito maiores. E a grande falha do discurso de Marcela foi não ter reconhecido essas dificuldades.

    Essas são questões que precisam ser debatidas, mostradas, enfatizadas.

    Atos simples como falar mais com os pequenos e, em linguagem simples, ir descrevendo o mundo ao redor deles –como as cores e os nomes dos objetos– já ajudam, e muito.

    Segundo Eduardo Queiroz, presidente da FMCSV, que incentiva projetos em prol da primeira infância, há iniciativas regionais no Brasil que têm sido bem-sucedidas em transmitir esse tipo de instrução.

    São os casos de programas como o "Família que Acolhe" (Boa Vista, Roraima) e o "Primeira Infância Melhor" (Rio Grande do Sul), que, de acordo com o governo, vão inspirar o "Criança Feliz".

    Cabe à sociedade brasileira acompanhar, cobrar, debater e criticar a implementação dessa política, mas não ignorá-la.

    Ao governo, cabe fazer uma ampla disseminação de informações sobre o assunto. Um bom começo seria corrigir a localização de Boa Vista em nota disponível no site do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário sobre o "Criança Feliz", que, erroneamente, situa a cidade no Acre.

    érica fraga

    É jornalista com mestrado em Economia Política Internacional no Reino Unido. Venceu os prêmios Esso, CNI e Citigroup. Mãe de três meninos, escreve sobre educação, às quartas.

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