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    Érica Fraga

    Mamãe, esse título da Folha está errado

    01/11/2017 02h00

    Eduardo Knapp/Folhapress
    Criança do Dia
    Oito dos 26 entrevistados na série 'Criança do dia'

    Dante, 8, folheava o jornal que eu havia deixado sobre a mesa na quinta-feira passada até que parou com atenção no título da capa de "Cotidiano": "55% dos estudantes de oito anos não sabem ler nem fazer conta direito".

    Ele teve dificuldade de entender o número em formato percentual. Expliquei que significava pouco mais da metade.

    Aí, leu o primeiro parágrafo da reportagem, que trazia mais detalhes, pontuando inclusive que a série dos alunos em questão era o 3º ano do ensino fundamental.

    Arqueou um pouco as sobrancelhas, leu de novo e disparou: "Mas eu tenho oito anos, estou no terceiro ano e sei ler e fazer conta já. Como essas crianças não sabem?".

    Respondi repetindo algo que falo para ele recorrentemente: "Você tem acesso a uma boa escola, filho. Nem todas as crianças têm essa sorte no nosso país, infelizmente. Lembra que a mamãe já te explicou isso?".

    "Mas, então, mamãe, avise na Folha que esse título está errado, tá? Não são as crianças que não sabem ler, são as escolas que não ensinam direito para elas".

    A beleza do pensamento linear infantil, que tantas vezes subestimamos. A tristeza da desigualdade educacional do Brasil, que perpetua a pobreza. A esperança de que as coisas um dia mudem. Será?

    Passei o resto do dia pensando em tudo isso, muito mais confusa do que meu filho sobre a lógica da vida.

    Esse episódio contribuiu, no entanto, para aumentar uma certeza que tenho hoje em dia, e que só cresce à medida que convivo com crianças: nós as subestimamos demais.

    A capacidade de compreensão delas vai muito além da nossa capacidade de reconhecê-la. Uma série de entrevistas que a Folha publicou há pouco com crianças de 6 a 12 anos, conduzidas pelos repórteres Fabio Victor e Paulo Saldaña, mostra isso com uma clareza incrível.

    Eles ouvem, juntam as pontas, concluem, querem saber de mais coisas. Em tempos de internet e do acesso fácil à informação, esse processo é ainda mais rápido.

    Nós, muitas vezes, omitimos, desconversamos, fingimos ignorar, na tentativa de protegê-las de temas difíceis ou talvez tentando escapar de papos demorados, cheios de perguntas que tomam muito tempo.

    Não é uma questão sem consequências. Ao ignorarmos a maturidade das crianças de maneira recorrente, corremos o risco de prejudicar o desenvolvimento de seu pensamento crítico.

    E é justamente desse pensamento crítico que dependemos para que as novas gerações se indignem mais do que a gente com questões como nossa desigualdade educacional e se mexam para tentar mudá-las.

    érica fraga

    É jornalista com mestrado em Economia Política Internacional no Reino Unido. Venceu os prêmios Esso, CNI e Citigroup. Mãe de três meninos, escreve sobre educação, às quartas.

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