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    Evgeny Morozov

    A realidade contraria os sonhos de trabalhar em casa

    07/01/2013 17h24

    Os argumentos iniciais em defesa do teletrabalho --especialmente os apresentados pelo futurólogo Alvin Toffler em seu best-seller "A Terceira Onda", de 1980-- sempre tiveram um lado fortemente romântico. Para os futurólogos como Toffler, o escritório caseiro seria um "bangalô eletrônico" que poderia "restaurar a unidade da família", prover "maior estabilidade nas comunidades" e causar "um renascimento das organizações voluntárias".

    Jogar boliche sozinho não seria problema: no futuro de Toffler, todos nós teletrabalharíamos juntos! (E cabe dizer que Toffler estava apenas popularizando ideias que circulavam já décadas antes. Por exemplo, Norman Wiener, o pai da cibernética, em seu histórico "O Uso Humano dos Seres Humanos" [1950], fala sobre como um arquiteto europeu poderia usar uma máquina parecida com um fax para controlar a construção de um edifício na América.)

    Os jornalistas de tecnologia engoliam avidamente essas histórias de emancipação via tecnologia. Em 1983, o jornal San Jose Mercury News elogiava os computadores domésticos por sua ajuda às mães que trabalhavam fora. Naquela época, não parecia insensato supor que o "bangalô eletrônico" um dia viesse a nos permitir, nas famosas palavras de Karl Marx, "caçar pela manhã, pescar de tarde, criar gado à noitinha e criticar depois do jantar". Para Toffler e seus seguidores, os seres humanos usariam computadores para realizar mais trabalho em menos tempo, evitando a experiência alienante de ir à cidade todos os dias para trabalhar das 9h às 17h.

    O sonho de Toffler --e o de Marx mais ainda-- parecem muito distantes da realização. De forma limitada, o teletrabalho realmente conquistou espaço considerável. Uma pesquisa Ipsos/Reuters conduzida alguns meses atrás constatou que cerca de 20% dos trabalhadores do planeta usam o teletrabalho frequentemente --e que a prática é especialmente comum no Oriente Médio, América Latina e Ásia. Os pesquisadores não perguntaram, mas seria razoável presumir que poucos desses trabalhadores se veem como moradores de qualquer forma de "bangalô eletrônico". Um dos motivos para tanto é que relativamente poucas empresas adotaram plenamente o teletrabalho. Muitas delas, claro, permitem que seus funcionários passem a sexta-feira trabalhando de casa, mas quase todas requerem a presença regular deles no escritório.

    Isso acontece, porque, embora trabalhar de casa possa parecer glorioso, as pesquisas demonstram que a prática nem sempre cumpre as expectativas. O mais recente fracasso notável quanto a isso foi uma experiência de um ano conduzida pelo Serviço de Gestão de Pessoal, a agência do governo norte-americano que gere os funcionários públicos federais. Nesse teste, alguns trabalhadores tinham completa flexibilidade para escolher seu local de trabalho, desde que entregassem o resultado esperado. Infelizmente, um relatório da Deloitte sobre o programa piloto revela que os executivos da agência perdiam a capacidade de avaliar o desempenho dos subordinados, a qualidade do trabalho se deteriorava e os próprios funcionários não sabiam se estavam dedicando tempo e esforço suficientes ao cumprimento de suas funções.

    É certo que nem todas as tentativas de promover o teletrabalho apresentam resultados ruins. A seguradora norte-americana Aetna é muitas vezes apontada como exemplo de sucesso. Nos Estados Unidos, 47% de seus funcionários trabalham de casa a cada dia. Mas também há um lado negativo em passar tanto tempo em casa. O pessoal de teletrabalho da Aetna tende ao excesso de peso, e a companhia agora oferece um personal trainer on-line para ajudá-los a ficar em forma.

    E, ao contrário de algumas expectativas iniciais, talvez o teletrabalho não seja tão positivo para o meio ambiente. Um artigo publicado em 2011 na revista científica "Annals of Regional Science" constatou que, em média, os teletrabalhadores se deslocam mais --tanto para fins de trabalho como para fins pessoais-- do que as pessoas que trabalham em escritórios. Em outras palavras, o fato de que não usam seus carros para ir ao trabalho não significa que os usem menos. Como define Pengyu Zhu, o autor do artigo, "as esperanças dos planejadores e das autoridades de que promover programas de teletrabalho como substitutos da interação pessoal reduzisse os deslocamentos tradicionais em geral não se realizaram".

    Outro aspecto que não recebe a atenção devida é a forma pela qual esforços de teletrabalho como o promovido pela Aetna realizam seus objetivos. Como revela uma recente investigação do "Wall Street Journal", mais e mais empresas que adotaram um regime de teletrabalho exclusivo precisam recorrer a novas e sofisticadas ferramentas de vigilância a fim de garantir que seus funcionários não enrolem. Os empregadores recorrem a captura de imagens de tela de computadores e rastreamento de uso da web (e também verificam quanto tempo os funcionários passam em cada site). Caso o funcionário utilize seu computador caseiro para o trabalho, sua privacidade --e a de seus familiares-- pode se tornar vítima colateral dessas práticas. Será que os empregadores não vigiam, ainda que apenas por acidente, aquilo que os trabalhadores fazem em suas máquinas fora do período de trabalho?

    O que significa que o suposto "bangalô eletrônico" se transformou em "senzala eletrônica". Não é apenas a vigilância, mas o fato de que muitos dos teletrabalhadores ocasionais realizam muito mais trabalho agora do que antes de sua "emancipação". Ou ao menos é isso que afirma um recente estudo publicado pela revista "Monthly Labor Review", do Serviço de Estatísticas do Trabalho norte-americano.

    Tomando por base dois conjuntos de dados bastante abrangentes, o estudo acompanhou a evolução das práticas de teletrabalho norte-americanas nas últimas décadas e oferece muitas informações preciosas e surpreendentes. Por exemplo, a probabilidade de que os teletrabalhadores sejam casados é inferior à dos trabalhadores convencionais (e lá se vai a união familiar de Toffler). Mas a constatação mais interessante é de que o teletrabalho, em lugar de restaurar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, pode fazer com que os funcionários trabalhem mais --só que de casa. Nas palavras dos autores, "o teletrabalho se tornou instrumental para a expansão geral da jornada de trabalho, facilitando as necessidades de horário adicional de trabalho dos trabalhadores para além da jornada semanal padrão e/ou a capacidade dos empregadores para intensificar a demanda de trabalho a seus assalariados".

    Em outras palavras, os teletrabalhadores --a maioria dos quais ainda precisa ir ao escritório, se bem que menos frequentemente que os demais colegas-- se veem apanhados em um dilema: querem usar a tecnologia para ganhar produtividade e passar mais tempo com suas famílias, mas a disponibilidade de recursos que propiciam maior produtividade faz com que seus empregadores esperem que eles realizem mais trabalho, mesmo que nos finais de semana ou no período noturno. A pesquisa Networked Workers, conduzida pela Pew Research em 2008, oferece forte sustentação a essas alegações, tendo constatado que "de 2002 em diante, aumentou a probabilidade de que os trabalhadores norte-americanos verifiquem suas contas de e-mail de trabalho nos finais de semana, nas férias, ou fora dos períodos de expediente".

    Será que os dispositivos economizadores de trabalho que deveriam permitir que encontrássemos melhor equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal só agravaram a situação? Se é esse o caso, os historiadores da tecnologia não se surpreenderiam muito com essa virada irônica. No clássico "More Work for Mother", Ruth Schwartz Cowan, historiadora da Universidade da Pensilvânia, mostrou de que forma a introdução de aparelhos que supostamente reduziriam o trabalho doméstico resultou em que as mulheres trabalhassem cada vez mais. Desconsiderado o aspecto de relações entre os sexos, a implicação filosófica mais ampla de Schwartz era ao mesmo tempo simples e intrigante: os supostos benefícios desses aparelhos não podem ser avaliados fora do contexto social, econômico e cultural mais amplo no qual eles são colocados em uso.

    Assim, a menos que aconteça uma revolução, talvez devêssemos moderar nosso entusiasmo por aquilo que a tecnologia de melhora da produtividade pode nos propiciar. Por mais tentador que seja imaginar que os carros automáticos do Google permitirão que assistamos a filmes em lugar de dirigir, o mais provável é que o tempo adicional propiciado por eles termine dedicado a planilhas chatíssimas. E se progresso for isso?

    Tradução de Paulo Migliacci

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