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    Evgeny Morozov

    Na nova "aldeia global", teremos fofocas ou notícias sérias?

    31/10/2013 07h00

    A ideia de que a mídia eletrônica uniria o mundo não é especialmente original --você se lembra da "aldeia global" de Marshall McLuhan?-- mas seus proponentes sempre foram nebulosos quanto aos detalhes. Será que devemos celebrar o fato de que "Gangnam Style", uma sátira aos hipsters sul-coreanos, tenha atraído 1,8 bilhão de visitas no YouTube ainda que a maioria dos espectadores provavelmente não tenha sacado a piada?

    Graças à mídia social, ideias agora podem se difundir em velocidade acelerada. A campanha "Kony 2012", um esforço viral conduzido no ano passado para capturar o líder militar ugandense Joseph Kony, serve como malfadado exemplo. Infelizmente, velocidade não se traduz facilmente em ação: em lugar de termos uma dúzia de pessoas profundamente envolvidas com um assunto, temos apenas o envolvimento passageiro de alguns milhões de interessados --e em formas que podem solapar os esforços para promover a conscientização mundial quanto a um problema como as guerrilhas da África. Campanhas virais como essa podem funcionar para intervenções direcionadas com precisão, a exemplo de esforços de arrecadação de fundos, mas qualquer coisa mais séria que isso se prova complicada.

    A mais recente inovação no cosmopolitismo digital vem do BuzzFeed, site que rapidamente se tornou um dos destinos on-line mais visitados. Em agosto, o BuzzFeed teve 85 milhões de visitantes, três vezes mais do que no mesmo mês em 2012. No ano que vem, deve se tornar um dos sites mais populares do mundo.

    Os artigos postados no BuzzFedd são escritos para compartilhamento, o que explica por que, de acordo com um estudo recente, suas reportagens são mais compartilhadas no Facebook que as de qualquer outro site, incluindo os dos jornais "New York Times" e "Guardian". (Uma típica reportagem do BuzzFeed: 10 citações, com imagens de Kanye West e Freddie Mercury, apresentadas em formato de desafio, com o título: "Quem disse isso - Kanye West ou Freddie Mercury?").

    A julgar pelos seus espetaculares resultados, o BuzzFeed fez da "viralidade" uma ciência; graças aos avançados recursos analíticos e ferramentas oferecidos pelos serviços de Big Data, eles sabem exatamente o que precisa ser dito --e como-- para conseguir que o maior número possível de pessoas compartilhem um artigo. A melhor descrição para o método seria "taylorismo viral". Da mesma forma que Frederick Taylor sabia como projetar uma fábrica de forma a maximizar sua eficiência, o BuzzFeed sabe como criar artigos que resultem no maior número de visitas e compartilhamento. O conteúdo do artigo é secundário com relação ao seu desempenho viral.

    Até agora, havia apenas um obstáculo ao plano do BuzzFeed para dominar o mundo --embora muitas de suas reportagens sejam altamente visuais, elas ainda contêm boa quantidade de texto, o que representa uma barreira para as pessoas que não falam inglês. Bem, a barreira desapareceu.

    O BuzzFeed fechou acordo com a Duolingo, uma promissora startup de ensino de idiomas criada por Louis von Ahn, a pessoa a quem devemos agradecer (ou culpar) pela criação do sistema CAPTCHA de combate ao spam, que nos força a digitar as letras que vemos em duas imagens a fim de provar que não somos robôs em missão de spam. O sistema CAPTCHA inicialmente usava textos aleatórios, mas depois von Ahn percebeu que podia fazer com que as pessoas combatessem o spam e ajudassem a digitalizar livros ao mesmo tempo. Por que pedir que uma pessoa digite letras aleatórias quando ela poderia estar digitando textos difíceis de ler extraídos de livros digitalizados?

    O guru de Internet Clay Shirky vê essa lógica -que ele define como "superávit cognitivo"- em ação em muitas outras porções da cultura digital. Em "Cognitive Surplus", que ele publicou em 2010, Shirky argumenta que devemos aproveitar esse "superávit cognitivo" para o bem comum.

    A Duolingo é a tentativa de von Ahn de construir um negócio explorando o "superávit cognitivo" inerente ao aprendizado de idiomas. Milhões, talvez bilhões, de sentenças são traduzidas a cada dia por estudantes de idiomas estrangeiros. Todas essas sentenças em seguida desaparecem no vácuo dos cadernos de estudantes ou livros de idiomas. É esse recurso que o BuzzFeed pretende explorar: os alunos que assinarem para cursos de idiomas da Duolingo terão por missão traduzir artigos do BuzzFeed, uma sentença por vez. Os artigos traduzidos serão oferecidos on-line. O modelo é elegante: os alunos precisam traduzir frases, de qualquer modo; a Duolingo não cobra dos alunos pelas aulas de idiomas, mas o BuzzFeed pagará à companhia pelas traduções finais.

    Essa é a versão BuzzFeed da "aldeia global": caso seu plano funcione, mais e mais pessoas em todo o mundo estarão lendo sobre a cultura popular dos Estados Unidos em seus idiomas. Note que o BuzzFeed não parece interessado em encontrar histórias publicadas pela imprensa estrangeira mas ignoradas nos Estados Unidos para transmiti-las às massas, em inglês ou qualquer outro idioma. Não, o que os interessa é tomar histórias virais que já provaram seu valor em inglês e globalizá-las, conquistando ainda mais leitores que antes seria difícil atingir por conta da barreira do idioma.

    No processo, eles atraem ainda mais tráfego e ingressariam, algum dia, nos mercados locais de publicidade --o BuzzFeed também está lançando edições locais em espanhol, francês e português brasileiro--, o que criaria um forte concorrente novo para as companhias nacionais que produzem notícias de verdade --aquelas que requerem dinheiro para que sejam apuradas, e que talvez não sejam compartilhadas com tanta frequência pelos usuários de redes sociais, por se concentrarem em questões mais duras, sem atrativo viral.

    Não existe cenário que faça dessa "virada cosmopolita" do BuzzFeed uma boa notícia para os sites estrangeiros de notícias, que se verão pressionados a ou adotar uma cobertura mais leviana -para que as pessoas "curtam" e compartilhem mais seus artigos- ou a aceitar a perspectiva de faturar ainda menos com a publicidade online em seus sites.

    De certa forma, o BuzzFeed está fazendo uso lógico das ferramentas oferecidas pelo Big Data e crowdsourcing --presumindo que o site realmente não se veja como uma empresa de notícias. O objetivo do BuzzFeed, afinal, é conseguir que as pessoas curtam e compartilhem seu conteúdo ao máximo possível nas redes sociais --pois é o curtir e compartilhar dos leitores que determina seu faturamento. Quanto a isso, o BuzzFeed tem mais em comum com uma empresa iniciante do Vale do Silício do que com uma organização jornalística tradicional, dotada de antiquadas preocupações cívicas que vão além da necessidade de maximizar e monetizar o tráfego recebido por seus sites.

    A parceria entre o BuzzFeed e a Duolingo revela a dificuldade de operar com conceitos apolíticos como "superávit cognitivo", desprovidos de bases reais na Economia ou nas teorias sobre a globalização. Aparentemente, a Duolingo e o BuzzFeed estão aproveitando ao máximo esse "superávit cognitivo", tendo descoberto uma maneira efetiva de explorar o vasto mercado de pessoas que desejam aprender inglês a fim de obter sucesso na economia globalizada. Mas desde quando isso é causa de celebração?

    Esse exemplo específico do uso do "superávit cognitivo" --em nome de construir uma aldeia global na qual o BuzzFeed seria o veículo noticioso mais popular - pode na realidade solapar o trabalho de veículos noticiosos que mantêm o mundo informado sobre notícias que não giram em torno de Kanye West, Hollywood ou gatos (alguns dos temas favoritos do site).

    Será que restará algum veículo noticioso sério, na "aldeia global"? Ou, como a maioria das aldeias, ela seguirá adiante com base apenas em fofocas? Até agora, a segunda hipótese parece mais provável - e por motivos que têm tudo a ver com economia e muito pouco com tecnologia.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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