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    Evgeny Morozov

    O fetiche da inovação

    24/03/2014 03h30

    Quem se opõe à inovação, hoje? Todo mundo parece desejá-la ardorosamente: o Vale do Silício, a conferência TED, a Comissão Europeia, os profissionais de capital para empreendimentos, Barack Obama. Até mesmo o jovem líder norte-coreano Kim Jong-un conclamou seus compatriotas recentemente a "carregar a tocha da inovação e construir um país socialista próspero". A inovação deixou de ser apenas jargão e se tornou um lema universalmente admirado, que une esquerda e direita.

    É mais fácil compreender por que os valores da inovação –experimentação sem meias medidas, impaciência radical com a ordem vigente– atraem os progressistas de todo o planeta. Como demonstrou o historiador canadense Benoit Godin, no século 19 o termo "inovação social" era usado primordialmente para se referir aos ativistas socialistas insatisfeitos com o ritmo lento das reformas e que desejavam mudança radical e imediata (a edição 1888 da "Encyclopedia Britannica" chegava a definir "comunismo" como "nome dado aos esquemas de inovação social que tomam por ponto de partida a tentativa de derrubar a instituição da propriedade privada".)

    Pelo final do século 20, porém, o termo havia perdido esse significado e passado a se referir primordialmente a novas práticas –em sua maioria de base tecnológica– que nem sempre causavam abalo na ordem social vigente. E esse continua a ser o significado ao qual a maior parte dos progressistas associa o termo hoje. O caso de amor da esquerda com a inovação é só um jeito de ocultar a gritante ausência de uma política de tecnologia –ao menos de uma política independente da infraestrutura e dos planos de negócios dos magnatas do Vale do Silício ou de seus equivalentes em outras nações– capaz de produzir benefícios sociais mais sólidos do que carros voadores ou pílulas de longevidade.

    Tome por exemplo algo básico como o acesso ao conhecimento –algo que serve de tema à esquerda desde a era do iluminismo. Seria lícito perguntar: qual é a visão atual da esquerda sobre o assunto? O Google, por exemplo, tem uma visão quanto a isso –o projeto Google Books–, mas seu avanço foi bloqueado pela Justiça dos Estados Unidos. O Google tem a ideia certa quanto ao futuro dos livros –ela só precisa ser tornada realidade de maneira diferente, com um papel muito mais forte para o setor público.

    Muito bem. Mas o que foi realizado na prática, depois disso? Nos Estados Unidos, há quem possa apontar para a Digital Public Library of America –uma iniciativa digna de elogios que busca propiciar acesso on-line a conteúdo digital privado; mas ela é um esforço promovido por universidades de elite e fundações privadas. Mal aparece nos radares das autoridades de Washington, e por motivos pertinentes: o sucesso de um projeto como esse requereria uma ambiciosa reforma estrutural do sistema de direitos autorais. E que político de esquerda teria a coragem necessária a isso? Com algumas poucas exceções, como a Noruega, a situação na Europa não é muito melhor.

    Em lugar disso, a esquerda prefere imaginar que o acesso democrático ao conhecimento se materializará magicamente; que a inovação produzirá projetos parecidos com a Wikipédia –com forte dimensão social e acesso gratuito. E é verdade que muitas plataformas criadas por companhias de tecnologia –do Skype ao YouTube– podem ser usadas para fins cívicos. Mas também é verdade que as companhias que benevolamente oferecem essas plataformas estão determinadas a maximizar suas agendas comerciais. Esses produtos podem desaparecer de forma tão rápida quanto surgiram, eliminando a infraestrutura de informação que todos já consideramos como dada.

    A posição dos conservadores sobre a inovação é mais ambígua. É difícil imaginar conservadores clássicos –no modelo de Edmund Burke ou Joseph de Maistre– se entusiasmando demais com o potencial de perturbação dos apps e dos novos aparelhos. Eles jamais trocariam seus monóculos pelo Google Glass. Mas hoje muita gente na direita celebra alegremente os frutos da "destruição criativa", aceitando a inovação como subproduto do capitalismo laissez-faire. Eles não dedicam muito tempo a contemplar o impacto disso sobre a cultura, pois "inovação" descreve também um processo darwinista –empresas iniciantes famintas devorando os líderes de mercado complacentes– muito amado por grande número de conservadores.

    No entanto, "inovação" vem se tornando cada vez mais um sinônimo de "desregulamentação". Há adeptos da direita libertária, especialmente nos Estados Unidos, que têm carinho especial pelo conceito de "inovação sem permissão" –uma ideia que eles tomaram de empréstimo à história da internet. A ideia é a de que a internet só prosperou porque seus criadores não precisavam implorar a poderosos vigilantes por permissão para criar novos serviços de busca ou redes sociais.

    É uma linha de argumentação que até mesmo alguns dos criadores da internet defendem. Como disse Vint Cerf, o criador do protocolo básico da internet, em 2011, "[na internet], se você deseja tentar alguma coisa, é só tentar. Os caras do Yahoo! e os caras do Google e os caras do Skype não pediram permissão para criar seus produtos e serviços; simplesmente os colocaram na internet para que as pessoas pudessem procurá-los e usá-los". Cerf, é bom apontar, se preocupa especialmente com o poder das grandes companhias –empresas como a AT&T– e não com o poder excessivo do governo.

    Para muitos libertários, porém, o sucesso indisputável da internet oferece um modelo maravilhoso para promover a desregulamentação mais ampla da economia. E o poder que eles desejam reduzir é o dos governos, não o das grandes empresas. "Os defensores da internet têm razão ao elogiar o modelo da permissão sem licença– mas estão errados ao imaginar que ele deva se limitar à internet", escreve Eli Dourado do Mercatus Center –um bastião do pensamento libertário dos Estados Unidos. "Podemos tornar a inovação legal também no mundo físico".

    Dourado se apressa a demonstrar de que maneira isso poderia ser feito, argumentando que o bitcoin "pode fazer pelas finanças o que a internet fez pelas comunicações". É como se não existisse diferença entre o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e a AT&T, já que os dois são instituições que exercem controle e restringem as ações alheias. O fato de que uma dessas instituições seja uma empresa privada que se tornou poderosa devido à falta de regulamentação e a outra um órgão público criado para executar uma missão pública não parece fazer diferença, para eles.

    Mas por que presumir que a inovação –e por extensão o crescimento econômico– deve ser a norma usada para que avaliemos o sucesso da política tecnológica? Seria perfeitamente possível imaginar que estivéssemos vivendo com uma "internet" muito diferente caso as autoridades regulatórias nos anos 90 tivessem proibido os sites de instalar pequenos trechos de código de software –os chamados cookies– em nossos computadores.

    Será que isso teria retardado o crescimento do setor de publicidade on-line, o que poderia tornar indisponíveis pequenos luxos cotidianos de que dispomos, como os serviços gratuitos de e-mail? Muito provavelmente. Mas a publicidade nem de longe é a única maneira de sustentar um serviço de e-mail: ele poderia ser bancado por assinaturas ou até por impostos. Soluções como essas seriam ruins para a inovação, mas a privacidade que conferem aos cidadãos poderia fazer bem à vida democrática.

    O motivo para que a direita libertária apoie essas posições é evidente. O que é menos evidente é por que tanta gente na esquerda –não só nos Estados Unidos mas em todo o planeta– prefere formular seus argumentos usando a linguagem da inovação e da economia, e não a linguagem da igualdade ou justiça –os temas tradicionais dos progressistas. Não é que esses temas estejam ausentes da agenda da informação: a esquerda, hipnotizada pelo jargão da inovação promovido pelo Vale do Silício e pelas conferências TED, simplesmente optou por ignorá-los. Mas o fetiche da inovação precisa ser desmontado. Uma política robusta de tecnologia e informação também precisa de outros temas!

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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