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    Fábio Seixas

    O herói impossível

    02/05/2014 02h00

    Senna tinha tudo o que se poderia querer num herói.

    Para o consumo externo: era brasileiro, e ainda que o país já tivesse história na F-1, pilotos daqui eram sempre vistos pela Europa como exóticos, vencedores pelo simples fato de terem chegado lá.

    Para o consumo interno: era o único brasileiro a ganhar alguma coisa naqueles meados e fins de anos 80, início dos 90. A seleção enfileirava fiascos, o vôlei era incipiente, a inflação galopava, os planos econômicos se sucediam, as Diretas fracassaram, o complexo de vira-latas atingia níveis estratosféricos.

    Era atlético, numa época em que vários pilotos fumavam e tantos outros eram barrigudos. Era bonito perto de Piquet, Mansell e Prost.

    Aliás, era o mais jovem da turma, o que sempre desperta simpatia.

    Falava bem, e sua entrevista ao "Roda Viva", reprisada na semana passada, faz muitos esportistas de hoje assemelharem-se a zumbis lobotomizados por assessores de imprensa.

    Tinha noção do valor de manter uma boa imagem.

    Numa era pré-internet e em que ligações internacionais eram luxo, telefonava para as Redações dos jornais após cada etapa na F-3 inglesa para relatar o resultado e dar suas impressões.

    Quando na F-1, fazia o bom moço, ainda que não o fosse por completo –nenhum campeão o é. Via Deus na curva, falava na importância de perseguir os sonhos, virou personagem de história em quadrinhos.

    E namorou a Xuxa! Quer mais?

    No cockpit, tinha um talento natural, dos maiores que a F-1 já viu.

    Imagine um piloto estrear por uma equipe pequena e, na sexta corrida, num circuito traiçoeiro como Mônaco, debaixo de chuva torrencial, chegar em segundo lugar.

    Imagine chegar à McLaren, ao lado de um bicampeão mundial, e logo no primeiro ano conquistar o título.

    Imagine vencer pela primeira vez na F-1, com um carro inferior e pista molhada, no mesmo dia da morte da então grande esperança nacional –Tancredo Neves.

    Ou um piloto amargar fracassos em casa, mas um dia vencer diante de seu público contornando as últimas voltas com apenas uma marcha e sair do carro debilitado, amparado por médicos.

    Ou largar em quarto numa corrida, cair para quinto, fechar a primeira volta na liderança e vencer com 1min23s (!!) de vantagem.

    Era um obcecado pelo sucesso. E possuía as ferramentas, todas elas, para obtê-lo.

    Pois este personagem morreu ao vivo, diante de olhos incrédulos do mundo todo. Alguma coisa tinha que estar errada. Heróis não morrem, afinal.

    O enredo que transformou Senna em mito dificilmente será repetido.

    É único. Deve continuar assim, por mais 20, 40, 60 anos. Mais. Mais.
    Mais que o herói possível. Senna foi impossível.

    fábio seixas

    Escreveu até junho de 2016

    É jornalista com mestrado em Administração Esportiva pela London Metropolitan University, da Inglaterra.

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