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    Fabrício Corsaletti

    A professora de jazz

    03/02/2013 03h00

    A pé e de coração pesado eu subia a rua Augusta a caminho do Espaço Itaú de Cinema, que antes se chamava Espaço Unibanco de Cinema e é um dos meus lugares preferidos na cidade.

    Ainda não tinha escurecido, mas no céu já pipocavam algumas estrelas e sob os toldos dos botecos as mesas estavam lotadas de garrafas de cerveja vazias. Devia fazer uns 30 graus. Pensei em desistir do cinema e beber também, mas segui em frente, torcendo pra que o filme fosse razoável e me tirasse um pouco de mim e do meu mundo.

    Estava difícil caminhar num ritmo constante, muita gente na calçada, trabalhadores nos pontos de ônibus, gays fellinianos, meninas lésbicas com piercings de ossinho de prata no septo nasal, machões rindo alto, um mendigo escritor, um travesti deprimido, um travesti japonês (o que é uma metrópole sem um travesti japonês?), velhos bronzeados, uma senhora antiquíssima, minissaias, gravatas, celulares... -pisei num cocô de cachorro e encostei numa árvore pra limpar o tênis na mureta do canteiro.

    De repente, um casal parou no meio da calçada, a uns três, quatro passos de mim. Ela apontou pro segundo andar de um sobrado do outro lado da rua, e eles olharam juntos pra lá. Olhei também, mais por instinto que por curiosidade. Numa academia com janelão de vidro, mulheres faziam aula de dança. Ele disse alguma coisa, mas só ouvi as palavras "jazz" e "professora".

    Depois os dois foram embora.

    Ilustração Guazzelli

    Observei que a suposta professora de jazz não usava polainas coloridas. Era possível dançar jazz sem polainas coloridas? Voltei 22 anos no tempo e me vi garoto, espiando pela fechadura de um portão de ferro a aula de dança que uma tia professora de ginástica dava na garagem da casa dela. Todas as alunas usavam polainas de lã. Eu achava aquilo o máximo. Às vezes me desequilibrava, apoiava as mãos no portão -ele fazia barulho, e eu era pego em flagrante.

    A professora da Augusta tinha as costas firmes, lisas. Sua bunda era perfeita. Os peitos, mínimos. Barriga não existia. Os braços e as pernas eram definidos demais. O cabelo estava preso num rabo de cavalo. Eu não estava interessado em nada que fosse erótico, mas aquela forma se movimentava e se impunha, e meu cérebro funcionava independentemente de mim.

    Se eu pudesse ouvir sua voz, talvez descobrisse que tipo de pessoa ela era -determinada, louca, desiludida ou cheia de esperanças. Entre nós, porém, havia o trânsito bizarro e uma multidão de seres ruidosos. Havia a minha timidez e o filme a que eu tinha me obrigado a assistir. Havia um monte de outras coisas que eu desconhecia, que ia morrer desconhecendo.

    No entanto, era bom saber que ela existia, que trabalhava perto da minha casa e que provavelmente nunca nos conheceríamos. Não nos tornaríamos amigos, nem amantes, nem inimigos, e não haveria mal-entendidos entre nós.

    Esperei a aula acabar.

    Depois entrei no cinema e vi um filme ruim.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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