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    Fabrício Corsaletti

    Xadrez Humano

    10/03/2013 03h00

    Do cenário o leitor talvez se lembre: a casa na Vila Mariana onde morei com amigos durante o período de faculdade e sobre a qual já escrevi mais de uma vez neste espaço. Os atores são 12 ou 13 amigos, homens e mulheres, sentados no sofá e no chão da sala, ouvindo música e conversando. Sem dinheiro pra cerveja, bebem tereré, espécie de chimarrão gelado comum no oeste paulista e em Mato Grosso do Sul, que um deles trouxe da última viagem a Presidente Venceslau.

    Chove. Está ficando tarde. Alguém fala em ir dormir, mas é impedido.

    - Espera um pouco que a Dani tá chegando com um "skank" holandês premiado.

    Uma hora depois o tereré é abandonado numa mesinha de bambu e a conversa atinge a lua. Querem fazer macarrão, mas não tem molho nem gás. Dividem um pacote de bolacha água e sal e fumam mais um pouco. A água do filtro acaba. Dois vão a pé até o posto comprar Coca-Cola e vodca. Demoram pra voltar e, nesse meio tempo, o Roubada tem uma ideia genial e pede silêncio pra anunciá-la.

    - Vamos jogar xadrez humano!

    Como? Ele explica que o piso da cozinha é um tabuleiro de xadrez, em vez de preto e branco, preto e verde-claro. Nós seríamos as peças.

    Ilustração Guazzelli

    A princípio não é levado a sério, mas logo estão desparafusando a porta da cozinha pra que a mesa de bilhar e a de comer sejam transportadas até a sala. Também retiram as cadeiras. E o armário de copos. E as bicicletas.

    Um deles encana com a louça suja e leva tudo numa bacia pro quarto do único morador da casa que está ausente.

    Ninguém sabe direito as regras do jogo. Procuram na internet um site sobre o assunto e esclarecem as dúvidas uns com os outros. Decidem que cavalo pode andar em L e em V, com três casas pra cada perna do V. Um purista se ofende e vai embora. Bebem uma rodada de vodca com Coca, que chamam de rússia-libre, e se posicionam.

    A cada meia hora, os times têm um tempo pra discutir estratégias. Quando isso acontece, marcam com um giz azul de bilhar o nome de cada jogador sobre a lajota em que se encontra, pra que não haja trapaças na retomada das posições.

    Às duas da manhã aparece uma nova turma de amigos. São sorteados e incorporados aos times. Quem é comido é obrigado a servir drinques pros que permanecem no jogo. A essa altura já concluíram que não tem problema quem está cansado sentar no chão. Cadeira e banquinho são proibidos. Não lembro por quê.

    Eu era uma torre e fui o primeiro a ser eliminado.

    Fui dormir o quanto antes porque no dia seguinte tinha uma prova de linguística. Quando passei pela cozinha de manhã, um rei e uma rainha se encaravam com olhos muito vermelhos.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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