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    Fabrício Corsaletti

    Devaneios, assalto, saxofone

    19/05/2013 02h30

    Nos anos 1940, Mário de Andrade se perguntava, num poema de sua "Lira Paulistana": "Ruas do meu São Paulo,/ Onde está o amor vivo,/ Onde está?". Quase 70 anos depois, o compositor Criolo, independentemente de ser ou não leitor do poeta modernista, respondeu com ceticismo: "Não existe amor em SP".

    O tema é polêmico, e minha pretensão, cada vez menor. Deixo, portanto, a solução da pendenga nas mãos de escribas mais preparados do que eu, e relato apenas que Renato se apaixonou por Mariana, que ama outro. Apaixonou-se e começou a escrever poemas. E pior: decidiu me mostrar tudo o que escreve, em visitas inesperadas no meio da tarde ou no início da noite.

    Conheço Renato há muito tempo, mas somos vizinhos há apenas seis meses. Até onde me lembro, ele não escrevia nem lista de supermercado. E gostava de demonstrar certo desprezo por essa atividade arcaica e nada lucrativa que é a escrita de versos. Mas a paixão por Mariana acabou com a frieza lírica do meu amigo. E meu amigo acabou com a minha paz.

    Teus olhos são como rãs
    (Calma, pois vou me explicar)
    São verdes e dão pulinhos
    Quando tento te pegar

    Ilustração Guazzelli

    Eu disse a ele que não prestava. Ele respondeu que estou com medo da concorrência. Devolvi que só na minha rua devia ter uns dez poetas melhores do que eu, mas sem dúvida ele não era um deles. Então ele sacou do bolso o soneto "Devaneios, assalto, saxofone" e leu.

    Mulher de corpo branco, lácteos seios
    Baixinha, mas de salto muito alto
    Detonadora dos meus devaneios
    Por tua causa ontem sofri um assalto

    Eu ia distraído, a mente em ti,
    Quando um larápio me pediu o iPhone
    Estava armado --não, não reagi
    Em casa decidi: um saxofone!

    Hei de comprar um sax essa semana
    Para tocar deitado em minha cama
    As aventuras desse amor tão puro
    Que me faz louco, sendo tão coxinha
    Que me faz galo, sendo tão galinha
    Que, sendo rico, me faz sempre duro

    O que me deixou preocupado foi saber que ele tinha planos de, além de poeta, se tornar músico. Mas, voltando à poesia, aproveito a oportunidade para transcrever uma estrofe de "Denise", do livro "Meu Diário em Sonetos", de Ives Gandra da Silva Martins:

    Novamente, Denise consultei.
    Acalmou-me no que refere à artrite.
    Mostrou-me, todavia, o que não sei,
    A formação de múltipla bursite.

    No mais, é como disse Rilke: "Quem fala de vitórias? Suportar é tudo".

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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