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    Fabrício Corsaletti

    O 'novo' livro de Rubem Braga

    02/06/2013 02h30

    "If you can't be free, be a mystery" ("Se você não pode ser livre, seja um mistério", em tradução literal), disse a norte-americana Rita Dove num poema. Não sei bem o que fazer com esse verso, mas gostaria muito que ele me acompanhasse, e acompanhasse o leitor, até o fim da crônica, enquanto trato de outro assunto: o livro "novo" de Rubem Braga.

    Organizado pelo professor e poeta Augusto Massi, "Retratos Parisienses" é composto por uma série de reportagens realizadas principalmente ao longo do ano de 1950, quando o cronista capixaba foi correspondente do "Correio da Manhã" em Paris.

    Mas dizer "reportagens" é faltar com a verdade. São antes perfis de artistas, como assinala na apresentação o mesmo Augusto do parágrafo anterior. Entre os perfilados estão Picasso, Braque, Matisse, Prévert, Sartre, Breton, Chagall e Juliette Gréco.

    Pra ficar só com Picasso. Braga o encontra em sua casa de Vallauris, no litoral francês, e observa: "É um pouco mais baixo do que eu esperava, retaco, musculoso e belo, com sua grande cabeça bronzeada. Sei que vai fazer neste verão 69 anos -e eu não lhe daria mais que 54. Conheço bem e tenho prazer em ver pessoalmente essa bela cabeça de homem à qual todas as marcas da passagem do tempo só fizeram ajuntar energia e firmeza: suas rugas, a calvície que lhe aumenta a pureza do vulto".

    Vai escrever bem assim no inferno. Se a gente quisesse, podia encostar a mão na testa de Picasso.

    Ilustração Guazzelli

    Em seguida descreve Françoise Gilot, na época esposa do pintor: "Está com um vestido leve, de verão, e embora também tenha queimado a pele, parece clara ao lado do marido. Os cabelos castanhos estão soltos nas costas, os olhos são verdes. Sua mocidade não fica de jeito nenhum mal ao lado desse homem que poderia ser seu avô. Há alguma coisa que combina nos dois, uma certa vitalidade rústica".

    Esses cabelos castanhos soltos nas costas. Desculpem o pedantismo, mas acho que parte da eficácia da frase vem do fato de ela ser formada por dois hexassílabos, dois fragmentos com seis sílabas poéticas cada: "os cabelos castanhos" e "estão soltos nas costas". Juntos, presos pelo nó frágil da união de "nhos" (de "castanhos") com "es" (de "estão"), ambas átonas, eles ondulam no ar, como o cabelo da personagem.

    É uma frase leve e musical, e macia graças à abundância da sibilante "s" --dá pra sentir a temperatura e o cheiro do pescoço de Françoise Gilot, o longo pescoço de Françoise Gilot, que inspirou seu marido em dezenas de retratos. E que bonita essa expressão, "vitalidade rústica".

    Além dos comentários sobre o casal, Braga ainda arrisca considerações sobre a arte do espanhol: "Vinte minutos antes de chegar à sua casa, eu ainda vira, se tudo não bastasse, mais alguma cerâmica de seu desenho, inclusive um alto vaso que ele rodeou de figuras alongadas de mulher, umas de pé, outras de cabeça para baixo --de uma graça e uma liberdade extraordinárias e, ao mesmo tempo, de uma grande dignidade clássica".

    Graça, liberdade e dignidade clássica -está aí uma boa definição do estilo do nosso maior cronista.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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