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    Fabrício Corsaletti

    Cordano

    28/07/2013 02h30

    Estive em Lima nas duas primeiras semanas de julho pra participar de um festival de poesia e tive a felicidade (melhor seria dizer a honra) de conhecer o lendário bar Cordano.

    Na verdade, não apenas conheci como passei nele muitas horas, sozinho ou acompanhado de amigos, de manhã ou à tarde ou à noite, já que o Cordano ficava a duas quadras do hotel no centro onde nos alojaram, próximo à Plaza de Armas, ao redor da qual se pavoneiam a catedral e o palácio do governo.

    No Cordano beberam César Vallejo (um dos maiores poetas latino-americanos do século 20), Martín Adán (de quem, na minha vasta ignorância, nunca tinha ouvido falar), Allen Ginsberg (que durante sua temporada andina esteve lá à procura de Martín Adán, o personagem de seu poema "A um velho poeta do Peru", mas acabou sendo expulso pelo próprio, que não gostava de ser incomodado) e Antonio Cisneros (morto em 2012 e cujos versos têm o brilho dos mariscos mais vermelhos da costa peruana).

    Mas bastava Vallejo ter entrado ali uma única vez pra comprar fósforos e, na minha entusiasmada opinião, o Cordano já seria um lugar sagrado. No entanto, o criador de "Trilce" e dos "Poemas Humanos" o frequentava (antes de se mudar pra Paris), e Cisneros praticamente morava lá --e no Piselli e no Queirolo e no bar do hotel Maury, todos excelentes e com mais ou menos cem anos cada um.

    O curioso é que não há uma única foto dos autores nem cópia de poema nas paredes do bar. Não porque, como seria de supor, os proprietários de ontem e de hoje sejam indiferentes à poesia. É possível que sejam, ou não, e não importa. O fato é que tanto eles quanto os garçons --mais antigos que os balcões gastos de madeira, mais rápidos que as portas de entrada à "saloon" de faroeste-- parecem sempre prontos a contar histórias sobre os artistas da casa.

    A conclusão a que cheguei é simples: eles aceitam, sem exibicionismo, que o Cordano seja o bar da poesia peruana. Negá-lo seria absurdo. Transformá-lo num templo --entupindo-o de imagens desses heróis da palavra que são os poetas, segundo o romancista e humorista Reinaldo Moraes-- seria forçado.

    No Cordano, você se instala diante de um "capitán" (metade pisco, metade cinzano, sem gelo) e quase pode ver outras dimensões.

    Mas isso só diz respeito a você. E o seu caro fantasma não estará embrulhado com as cores da nova moda velha da Vila Madalena. É o seu fantasma. Fale com ele. Pergunte como tem passado. Ele não cobra em dólares nem trapaceia.

    E quando você paga a conta e ganha a calçada --furiosamente feliz ou deliciosamente melancólico-- e aspira um ar viscoso e nutritivo sob o céu escuro, entende a inutilidade do remorso e a resistência do desejo, como se a melhor coisa do mundo fosse ter coragem.

    De quantos bares de São Paulo podemos dizer o mesmo?

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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