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    Fabrício Corsaletti

    Ela me dá capim e eu zurro

    08/09/2013 02h30

    Eu ia passar duas ou três horas no trânsito --um metrô com baldeação mais dois ônibus-- e seria bom ter algo pra ler. Antes de sair de casa ainda pensei em levar "A Condessa Russa", romance anônimo do século 18 que eu vinha degustando devagar e com grande interesse.

    Mas era uma edição tão bonita, além de pesada; fiquei com medo de amassar a capa ou aguçar a tendinite. Deixei o livro em cima da mesa e desci pra rua de mãos vazias.

    No elevador já estava arrependido. Assim, quando cheguei na Paulista parei na banca em frente ao Conjunto Nacional e, depois de considerar minhas opções, comprei o volume de bolso "Shakespeare de A a Z", organizado por Sergio Faraco e publicado pela L&PM, uma coletânea de frases do dramaturgo inglês.

    Não sei quase nada de Shakespeare, mas dizem que Shakespeare sabe tudo de mim, isto é, de tudo aquilo que é humano --e bem ou mal faço parte da espécie. Então peguei o metrô, abri o livro ao acaso e tentei me concentrar.

    "Ó beleza! Onde está tua verdade?", perguntava o bardo logo de saída. Preferi não esperar pela resposta e virei a página. "Pobre é o amor que pode ser contado", dizia Antônio em "Antônio e Cleópatra" (abaixo de cada fala há uma explicação sobre qual personagem, em qual cena e em qual peça a pronuncia), o que achei --quem sou eu pra achar alguma coisa de Shakespeare, mas enfim-- ótimo, verdadeiro. Mais verdadeiro, aliás, que as aspas anteriores, pois até onde me disseram a verdade da beleza é a própria beleza.

    Outra virada de página: "Quem é calvo por natureza, em tempo nenhum recupera o cabelo". Sem dúvida. E outra: "Ouve opiniões, mas forma juízo próprio". Meu lema. E outra: "O mel mais delicioso é repugnante por sua própria delícia", que eu já conhecia de "Romeu e Julieta", uma das duas peças que li do autor.

    Sinceramente: eu estava gostando médio dessa leitura. Fora de contexto, as frases não estavam batendo esse bolão todo. Talvez fosse culpa da tradução, embora não parecesse. Talvez o formato do livro desse às citações um aspecto de auto-ajuda. Talvez eu estivesse de mau humor. Sei lá.

    Ilustração Guazzelli/revista sãopaulo

    Mas a poesia, como nos ensinou Borges, está em toda parte, inclusive nos livros de poemas (não era bem o caso). E na página 26 topei com ela, via Drômio de Siracusa, na "Comédia dos Erros": "Ela me dá capim e eu zurro".

    Imagino que o sentido original do verso seja outro, mas assim, isolado, com ela e ele, capim verde e fresco e o maravilhoso verbo "zurrar", tive a impressão de ter dado de cara com a própria imagem do amor feliz.

    O amor simples, realizado, cotidiano entre duas pessoas comuns, nem feias nem bonitas, nem perfeitas nem mal intencionadas, metade sublimes metade neuróticas, com pouco tempo durante a semana mas com sábados e domingos razoáveis, em cujas manhãs ela lhe dá capim e ele zurra e vice-versa.

    Em outras palavras, quem é que sabe o que acontece entre dois que decidiram viver juntos?

    Ou, como dizia o avô do Gonza, menos famoso mas não menos sábio que o nobre William: "Quem for melhor que eu que se foda".

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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