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    Fabrício Corsaletti

    O Elvis da Paulista

    20/10/2013 02h30

    O que é São Paulo? O que é o Brasil? O que significa ser culturalmente colonizado? Qual o preço da minha liberdade? O que o Mussum estará fazendo a essa hora no Céu dos Trapalhões?

    Eram perguntas que eu me fazia, rindo sem parar, enquanto sacava dinheiro num caixa eletrônico da Paulista depois de ter presenciado uma cena verdadeiramente extraordinária, como diria o velho boxeador de "Caros F... Amigos", de Mario Monicelli.

    Acontece que minutos antes, por volta do meio-dia, eu caminhava pela calçada do Masp, sentido Consolação, quando, na quadra do shopping Center 3, ouço a melodia de "Suspicious Mind".

    De início achei que fosse loucura minha, mas em seguida vejo, perto de um ponto de ônibus, um Elvis cover --calça boca de sino branca, camisa, branca também, desabotoada até a altura do umbigo com a gola virada pra cima, topete (peruca?), costeletas (postiças), relógio e colar dourados, óculos escuros e sapatos brancos de bico fino. Segura um microfone conectado à caixa de onde vem a música, finge cantar ou canta por cima da voz original --e dança.

    ilustração Guazelli

    Até aí nada de mais, embora o visual de Elvis Presley na fase Las Vegas seja sempre chocante.

    Mas eis que um ônibus para ao lado de Elvis, as portas se abrem e, ato contínuo, o cantor entra nele pela porta da frente. O motorista ri. O cobrador ri. Elvis, mais empolgado do que nunca, alcança o volante e aperta a buzina --uma, duas, três, quatro vezes.

    Não há mais passageiros pra desembarcar, mas o ônibus não arranca. Elvis canta lá dentro, como uma Ivete Sangalo que se tornasse guia de excursão. Um grupo razoável de pessoas na calçada observa e comenta a cena. Elvis volta pra escada, faz dela seu palco e grita:

    - Vamos lá, gente! Todo mundo.

    "Suspicious Mind", que nunca foi uma canção propriamente recomendada pra se ouvir com a cabeça dentro de um tubo de ressonância magnética, parece agora a música mais alucinada da história. É como se alguém tivesse aumentado o volume do som e acendido uma tocha olímpica dentro do peito do Elvis tabajara.

    Ele pula no degrau, de braços erguidos e pernas agitadas. De repente sobe --correndo-- mais uma vez a escada e, no auge da performance, abraça e beija o motorista.

    Quando desce do ônibus, é aplaudido. Um senhor tira o celular do bolso e se posiciona pra tirar uma foto do astro. Mas este, ao ver a câmera, se agacha, estende a perna esquerda de lado, pega com a mão esquerda o bico do sapato, abre o peito, sorri pro fotógrafo e faz um alongamento --com evidente orgulho da própria elasticidade.

    Em segundos o público se dispersa. Outros ônibus passam. Nem pensam em parar. Elvis ataca de "Teddy Bear".

    Ó alma! Ó pensamento! Ó Cuba! Ó Lina Bo Bardi!

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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