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    Fabrício Corsaletti

    O elfo assobiador

    01/12/2013 02h30

    Acreditem em mim: há esperança. Ou pelo menos a possibilidade de não morrer de tédio e rir um pouco. Senão, vamos aos fatos.

    Ele era o cara mais chato que eu conhecia. Além de chato, era pretensioso; além de pretensioso, tinha mau hálito; além do mau hálito, costumava sacanear os colegas de trabalho.

    Como diria Humphrey Bogart em "Casablanca", se eu parasse um minuto pra pensar nele, provavelmente o desprezaria. A verdade, porém, é que só lembrava que ele ainda estava vivo quando nos encontrávamos a cada dois meses nas reuniões de um frila que fizemos juntos.

    Em outras palavras, era um sujeito a respeito do qual eu esperava uma única notícia: está morando em Dubai. Só volta em 2037.

    Mas o cultivo do rancor é uma arte ingrata. Na maior parte das vezes as pessoas merecedoras do nosso ódio nos surpreendem positivamente. E dá-lhe remorso pra equalizar a consciência.

    Ilustração Guazzelli

    A cena é a seguinte: a reunião do frila acaba, depois de três horas excessivas, e quase todos os homens vão ao banheiro. Somos seis ou sete. Na minha frente vai o chato --vou chamá-lo de Emerson. Sou o último da fila. Entro: os mictórios estão ocupados. Percebo que Emerson não ocupa um deles. Me instalo numa baia (ou seja lá qual for o nome daquelas repartições de banheiro coletivo sem teto e com porta faltando um palmo pra encostar no chão).

    Ninguém conversa. O silêncio me ajuda a pensar que em breve estarei em casa, vendo TV ou lendo algum conto. Ou no pub da Augusta tomando um pint de Guinness --boa-- e exterminando um a um os neurônios que preservariam (pra quê?) os piores momentos das últimas horas.

    Mas eis que na baia ao lado começam a assobiar. E o que assobia meu vizinho? Caso vocês tenham esquecido essa pérola do cancioneiro infantil, transcrevo a letra: "Sambalelê tá doente/ Tá com a cabeça quebrada/ Sambalelê precisava/ É de umas boas palmadas// Samba, samba, samba, olerê/ Samba, samba, samba, olará".

    Quando reconheci a cantiga, tive que me controlar pra não rir alto nem mijar fora do vaso. Pois juro: era um assobio tão entusiasmado, tão alegre, parecia vir direto das trevas da infância. Não era o assobiozinho de um pardal, de um bem-te-vi, de um rouxinol qualquer. Mas o assobio de um boi ou de um urso, se urso ou boi assobiassem. Um assobio radiante como uma fuga de Bach e intenso como um quadro de Matisse. Um assobio de uma demência completa.

    Enquanto lavava as mãos, a porta da baia do assobiador se abriu --eu a observava pelo espelho. O leitor já deve ter adivinhado, mas na hora me surpreendeu ver Emerson ali.

    Quer dizer que aquela besta tinha no fundo a alma de um elfo? Que sua mente era doce como deve ser a grama da planície onde os teletubbies dão cambalhotas? Imaginei Emerson criança, e sua pureza me comoveu a tal ponto que me lembrei da minha professora de catecismo.

    Cheguei em casa arrependido, com a certeza de ser o pior dos homens. Mais tarde sonhei que ia pro inferno --onde um milhão de pessoinhas coloridas, todas com cara de Emerson, cantavam o "Sambalelê" e sorriam e dançavam e pulavam de mãos dadas.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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