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    Fabrício Corsaletti

    Mais leve que o ar

    19/01/2014 02h30

    Finalmente fui ao cinema ver o festejado "Azul É a Cor mais Quente", de Abdellatif Kechiche. Que filme maravilhoso! E digo mais: que filme maravilhoso!

    Saí do cinema com a alma lavada —sem precisar fazer concessões pra dizer a mim mesmo que tinha gostado. Desde as primeiras cenas entendi que estava diante de algo verdadeiro, e era melhor manter os olhos abertos e suspender as conclusões precipitadas.

    Nada de ticar mentalmente, depois de observar o pessoal na escola: adolescentes, tédio, angústia e sexo, meus 16 anos tristes. Antes: primeiros azuis do título, macarrão caseiro, cigarro na manhã, o vagamente desconhecido e a poderosa cultura francesa —a libertária— atravessando dois séculos e lá vai pedrada.

    Não estou a fim de escrever resuminhos.

    Mas confesso: passar 2 horas e 40 minutos cara a cara com Adèle Exarchopoulos é como ser atirado dentro de um tonel de água primitiva, uma água inventada por um daqueles impressionistas alegres, água que poderia muito bem ser o ar que vibra ao redor da grama verde, do vestido roxo e do chapéu de palha provençal à luz frisante do verão.

    Adèle Exarchopoulos não é uma musa inefável, nem um ET hollywoodiano de botox. Sua beleza é simples e, sobretudo, real. Sua boca é real, sua bunda é real, sua pele é o que o há de mais real neste mundo.

    Seu cabelo, apanhado num coque mal ajambrado, do qual se desprendem umas mechas castanhas, talvez seja um pouco irreal... —dessa irrealidade de que são feitos os poemas persas de García Lorca.

    O que são as mulheres Melancia, Jaca, Sapoti e Abacate, do "Pânico na Band" ou das baladas do Itaim, comparadas com as duas protagonistas da obra de Kechiche? Bonecas de cera não terminadas, modelos descosturados do Instituto Sinistro de Anatomia, pernil espanhol em processo de defumação.

    Uma associação que me ocorreu agora: "Azul É a Cor mais Quente" tem algo da banda argentina Perota Chingo, de quem assisti a um show na Vila Madalena no ano passado. A franqueza, a relação direta com as coisas, da geração Passe Livre.

    Falar em filme gay não basta. "Azul" é uma história de amor. Se o planeta continua imaturo pra alegria, como no século de Maiakóvski, se homossexuais ainda são espancados na rua Augusta, é outra conversa. Não, é a mesma, porém sob um ângulo menos didático.

    Numa sociedade livre da homofobia o filme seria apenas o estudo delicado de uma paixão entre duas pessoas.

    E pra não dizer que só falei de flores: por que todo personagem do cinema que ousa empunhar um pincel está condenado a realizar pinturas medonhas? Por que os diretores insistem em mostrar essas telas? As que Emma (Léa Seydoux) faz de Adèle (a atriz empresta o nome à personagem) são piores que os desenhos de Leonardo DiCaprio em "Titanic".

    Mas isso é detalhe. O que importa é que "Azul É a Cor mais Quente" bate a noite como uma toalha de mesa; livra-a das migalhas; constrói com ela um balão; acende um fósforo e assopra.

    No céu, a lua crescente é a unha à francesa de uma mulher muito alta.

    Ilustração Guazzelli
    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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