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    Fabrício Corsaletti

    Ilha Solteira e depois

    DE SÃO PAULO

    02/02/2014 02h30

    Uma vez por ano os escoteiros do Brasil inteiro se reuniam em Ilha Solteira, na divisa com o Mato Grosso do Sul, numa espécie de congresso nacional de pirralhos acendedores de fogueira, armados de facões e canivetes e com chapéus iguais ao do guarda-florestal do Zé Colmeia.

    Mas eu não estava me sentindo bem. Era o meu terceiro acampamento desde que tinha entrado pro escotismo, o primeiro em Ilha Solteira, e no instante em que soquei minha mochila no fundo da barraca eu soube que estava a um passo de desmoronar.

    Escoteiros são um pouco como militares: machos, implacáveis e contrários a grandes variações de humor. E meu humor estava por um triz.

    Ilustração Guazelli

    Quando entrei no banheiro de ralos entupidos, onde outros trinta meninos tomavam banho, e a água subiu quase até os meus joelhos, tive que fazer força pra não chorar nem vomitar. Senti falta de casa. Meus olhos se encheram de lágrimas. Se alguém percebesse, eu estava morto.

    Por sorte, naquela noite chegaram as bandeirantes, as "escoteiras". Agora a minha saudade não era mais de casa, mas sim de um único cômodo, o quarto da Paula, lugar de reunião das suas amigas, que me deixavam ficar sentado num canto, ouvindo a conversa delas. A lembrança do quarto da minha irmã me deu forças; entre as bandeirantes eu também ficaria à vontade; a vida voltaria a fluir.

    Me enfiei no meio delas, e a mais alta como que se iluminou. Tinha a pele morena e lisinha feito um Danette de chocolate, sobrancelhas grossas, olhos pretos muito vivos e pernas compridas dentro de galochas vermelhas. Era séria. Devia ser profunda. Provavelmente também estava odiando aquela confraternização idiota.

    Fiquei empolgado por tê-la descoberto. Tomamos um sorvete na cantina do parque em que estávamos
    acampados. Contei a ela que ouvia Ramones, que andava de skate e que tinha problemas com o chefe da minha patrulha.
    Eu tocaria fogo no acampamento se ela quisesse. Eu a
    acompanharia até o Alasca e além.

    Às minhas perguntas ela respondia de maneira vaga, estranha. Hoje sei que essas perguntas giravam em torno de um mesmo tema e poderiam ser resumidas assim:

    — O que um docinho como você veio fazer nesta pocilga?

    Acontece que o docinho era filha do chefe mais pentelho, o gordão de risada sinistra, e se vangloriava de ser uma bandeirante exemplar. Cumpria as leis de Baden-Powell (infelizmente não o músico) à risca. Não tinha uma única gota de romantismo no sangue. Sua fama (quem foi o animal que me contou tudo isso?) corria o sertão de Goiás. Lembro que o nome de Corisco foi citado.

    Na noite seguinte a cangaceira juntou três amigas. Elas subiram no palco (não era o prenúncio das Pussy Riot, acreditem), pegaram o microfone e gritaram em uníssono:

    — Fabrício de Santo Anastácio, você não é um escoteiro de verdade!

    Nem escoteiro, nem nada, e cada vez mais propenso a mudanças de humor.

    Mas por que resolvi desencavar essa história? Porque há um clima de escotismo no ar. No meu bairro ou nos jornais, nas rodas literárias ou no Brasil e no mundo.

    Não custa ficar esperto.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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