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    Fabrício Corsaletti

    Um Fusca

    16/02/2014 02h30

    — Cês viram que roubaram o Fusca do Paulinho?

    Estávamos num jantar de aniversário. Como de costume falou-se dos amigos ausentes, e então alguém deu a notícia trágica.

    Sei que Fuscas não valem grande coisa e todos os dias centenas de carros são roubados em São Paulo. Mas aquele era um carro especial. Seu valor não podia ser medido em reais.

    Se não me engano o Paulinho o comprou em 2002, 2003, numa era pré-iPhone e pré-casamento, quando encontrar os amigos não era tão complicado, só dependia de você querer ou não, pois sempre havia algum desgraçado na rua, nos bares, a fim de atravessar heroicamente a noite, e o Fusca vermelho-tomate se transformou no meio de transporte oficial dos fins de festa. (Isso numa era pré-Lei Seca, é verdade.)

    Ilustração Guazelli

    Voltar pra casa de carona no Fusquinha, com o barulho nada estridente, agradável até, do seu motor de geladeira servindo de trilha sonora, era como, numa ambulância, ouvir uma balada de George Harrison da boca de uma enfermeira que fosse a irmã gêmea da Scarlett Johansson. Consistia na melhor maneira de iniciar o doloroso processo de abrir a porta do apartamento vazio, escovar os dentes, tomar um copo d'água, arrancar os tênis com a ponta dos pés, deitar sobre um lençol mais ou menos limpo e desmaiar.

    Depois vieram os casamentos e os filhos; todo mundo começou a trabalhar demais e a tomar Omeprazol; as baladas ficaram cada vez mais escassas; de minha parte passei a beber menos e só no fim da tarde, pra conseguir levantar cedo no dia seguinte e escrever.

    Fiquei anos sem ver o Fusca do Paulinho. Fui reencontrá-lo no casamento do Chico e da Belle, que fizeram questão de que o amigo fosse o chofer e o Fusca a limusine que os levasse pro restaurante do centro onde ocorreu a cerimônia.

    Outra glória da joaninha: foi dentro dela, numa noite de verão, que a Marina, hoje mãe da filha do Paulinho, sentiu as pernas molhadas e disse ao marido, que dirigia enquanto lhe contava sobre uma tia excêntrica, "corre pro hospital que acho que a bolsa rompeu".

    Numa das últimas bebedeiras mastroiânnicas, o Paulinho, a Marina, minha namorada e eu planejamos ir a Juiz de Fora de Fusca. Diziam que lá havia uma oficina mecânica especializada em Fuscas, e o do Paulinho estava precisando trocar o assoalho.

    Essa viagem, que afinal acabou não acontecendo, ocupou muitas horas da minha imaginação. Aos poucos, foi ganhando a consistência de um pequeno road movie pessoal, com queijos, cachaças, torresmos, estradas, montanhas, janelas, estrebarias e outras maravilhas
    pululando aqui e ali.

    Na minha cabeça, Juiz de Fora, que só conheço de um poema de Manuel Bandeira, virou uma espécie de Pasárgada possível, cheia de mineiros simpáticos e um mecânico sem pressa, que não terminava nunca o serviço — e assim tínhamos tempo de sobra pra visitar as praças, os botequins e os casarões coloniais com azulejos tão belos quanto iluminuras de livros centenários.

    Mas a essa altura o Fusca já foi depenado e não existe mais. Talvez Juiz de Fora também não exista mais. Ou é alguém em mim —o que de certo modo é um alívio— que aos poucos vai deixando de existir.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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