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    Fabrício Corsaletti

    Concorde pras Bahamas

    06/04/2014 02h30

    Dia 8 de dezembro fará vinte anos que Tom Jobim morreu. Os especialistas falarão das suas melodias extraordinárias, das harmonias isso e aquilo, dos acordes inesperados e certeiros.

    Não entendo de música. Apenas convivo com ela como um dia convivi com a gata Bardot: com fascínio e devoção. Porém não saberia explicar como os gatos funcionam, no que constitui seu mistério.

    Ilustração Guazzelli

    Então vou ficar quieto. Quieto e parado ouvindo "Passarim". É tão sublime que dá vontade de chorar. Mas lágrimas seriam um excesso diante desse voo calmo e intenso, desse rio de ar que corre num planalto distante, muito verde e com pedras enormes, no país sem continente e que não é nunca uma ilha a que chamamos de música de Tom Jobim.

    Respirar, sem ansiedade -melhor que Frontal e uísque doze anos. E acompanhar sua poesia simples, gêmea da perfeição: "Quando ando pelo Soho/ Eu me lembro da Gamboa".

    Difícil dizer por que o dístico convence. Mas o fato é que no primeiro verso estamos junto com o letrista no Soho, em Nova York, e no segundo já estamos na Gamboa, no Rio de Janeiro. Mais veloz que avião. Sem fila de check-in nem turbulência.

    "Quando dobro a esquina/ Dou de cara com a saudade". Qual a cara da saudade? A de uma morena de vestido leve caminhando com uma sacola na mão olhando as vitrines das lojas? E não há realmente uma esquina na passagem do primeiro pro segundo verso?

    Pra terminar, esta estrofe da faixa anterior, "Chansong": "You look so cute there wearing my pajamas/ You look so sexy with my pince-nez/ Let's hijack this Concord to the Bahamas". Que em tradução tabajara ficaria assim: "Você fica tão bonitinha vestindo meu pijama/ Você fica tão sexy com meu pincenê/ Vamos sequestrar esse Concorde pras Bahamas".

    Tem de tudo aí: ternura (em "cute"/bonitinha), intimidade (no ato de usar o pijama do outro), safadeza (nos óculos-fetiche), romantismo (no sequestro do avião, que lembra o roubo oitocentista de um cavalo) com uma pincelada contemporânea (somos informados sobre o tipo do avião), evolução verso a verso da tensão erótica entre os amantes (bonitinha/sexy/decolagem fálica do Concorde) e originalidade bem-humorada e autoirônica na rima de "pajamas" com "Bahamas".

    O que um bom contista levaria três páginas pra botar de pé Tom Jobim resolve em três linhas.

    Quando ele morreu eu tinha 16 anos e estava jogando sinuca numa biboca de Uberlândia, em Minas Gerais, com um primo da minha idade e um cara mais velho, cocainômano, que conhecemos por acaso e que dizia sem parar:

    — Vocês são muito novos. Um dia vão se corromper, e aí vão lembrar de mim.

    Não sei por que ele insistia nesse ponto. Talvez porque não quisemos cheirar com ele, talvez porque tivesse traído alguém, talvez porque tinha acabado de perder uma partida pro meu primo. Tanto faz.

    Nunca consegui esquecer esse cara. E passei duas décadas me perguntando se ele tinha razão. Mas hoje, enquanto ouço Tom Jobim, depois de anos longe dos seus discos, acho que o maluco de Uberlândia estava errado, ou entendeu só metade da verdade. Certas coisas não se corrompem jamais. E não adianta se indignar por isso.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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