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    Fabrício Corsaletti

    No ar dos vivos

    18/05/2014 02h00

    Dentro de mim moram tias velhas, senhoras gordas com quem convivi na infância e que morreram no século passado e que às vezes se apoderam da minha alma e se intrometem na minha fala e me induzem a dizer coisas inacreditáveis.

    Por exemplo:

    Estávamos no começo do namoro. Tudo era quente e fácil entre nós. No céu as nuvens se entrelaçavam sem ruído. Dava pra ver o instante em que o vento se despedaçava nas folhas das árvores. Naquela noite iríamos ao cinema. Eu a esperava na sala, ela se arrumava no quarto. Quando disse "estou pronta" e me viu de jaqueta, ficou em dúvida se seu vestido de algodão era pouco pro outono que vacilava lá fora. Perguntou o que eu achava. E a minha resposta foi:

    — Não custa nada levar um casaquinho.

    Ela teve um ataque de riso, eu um ataque de pânico; no cinema ela ainda dava umas risadinhas sádicas pra me provocar. Quem tinha proferido aquela frase por mim?

    Ilustração Guazelli

    Logo descobri: a tia Encarnação, cuja fama finalmente fazia jus ao nome. Ela era cunhada da minha avó Gertrudes, morava numa casinha de madeira na saída da cidade, perto da linha do trem. Uma vez por ano eu ia com minha avó visitá-la. As duas ficavam na sala, comendo rosquinha de pinga (a receita é simples: três medidas iguais de cachaça, açúcar e banha de porco) e tomando café doce.

    Entre uma ida e outra ao quintal pra brincar com o cachorro e comer goiaba, eu sentava perto delas e ficava ouvindo as últimas bizarrices de parentes distantes. Não lembro se me interessava ou não por essas histórias, mas gostava das velhas, da maneira como elas conseguiam se entender sem socos, palavrões ou ameaças. Eram bem diferentes dos meus amigos de escola e rua.

    A tia Encarnação era só uma delas, havia outras, e eu também as "recebo" de vez em quando.

    Se estou tímido então, aí não tem erro: lá vem a tia Marina com algum conselho antiquado pra alguém que não pediu minha opinião, ou a tia Enriqueta com um risinho sacana de sambista do corso do Carnaval de 1926 dizendo barbaridades. Devem sentir falta de tagarelar como antes, quando eram vivas e submissas e solidárias e fofoqueiras e moralistas e medrosas e loucas de vontade de viver.

    Quem sou eu pra censurá-las, pra tirar delas essas poucas sentenças desafinadas (que me matam de vergonha) em nome de um... equilíbrio de tom? coerência de discurso? adequação desiludida a sei lá o quê? Melhor deixar que falem à vontade. Que digam o que pensam ou acham que pensam e nesse instante estão deixando de pensar. Que encontrem algum conforto no ar dos vivos, tantos anos depois —que se misturem
    a ele e se dispersem por aí.

    Até que entendam que acabou.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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