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    Fabrício Corsaletti

    Seis

    15/06/2014 02h00

    Repolho

    Tenho um amigo francês que morou doze anos em São Paulo e não sabe a diferença entre couve e repolho. No ano passado, em Paris, ele fez uma feijoada pra que eu conhecesse seus amigos franceses. No lugar do paio usou uma linguiça de Chambord e em vez de couve serviu repolho.

    Elogiei a linguiça e comentei que, olha só, feijoada com repolho também era bom. Ele ficou furioso. Aquilo não era repolho, era couve. E explicou que couve e repolho são a mesma coisa. Come-se feijoada com couve, ou seja, repolho. E vice-versa.

    Depois que ele se acalmou, seus amigos franceses me perguntaram se era aquela verdura que costumava acompanhar a feijoada no Brasil. Eu disse que não. O cozinheiro resmungou alguma coisa em francês, que não entendi, e passou o resto da noite me ignorando.

    Proust

    Ela tem 25 anos e quer impressionar o pornógrafo consagrado, de 64, com quem conversa pela primeira vez. Enumera os livros que leu nos últimos meses e faz comentários inteligentes sobre eles. Até que, falsamente constrangida, confessa que nunca leu Proust.

    — Eu também não li Proust — diz o pornógrafo. — Mas vou ler. Antes de morrer ainda vou ler Proust.

    Aí para, pensa, ri e conclui:

    — Porque depois de morto eu não vou ler Proust. Depois de morto eu vou deixar de ler um monte de coisa. Depois de morto eu só vou ler gibi.

    Mãe

    Às onze da manhã de um domingo, entra na cozinha da casa da avó suado do futebol. A família reunida em torno da mesa. A mãe levanta, pega pelo rabo um peixe frito e vai na sua direção:

    — Quer sardinha, filhinho?

    E ele, dando um passo pra trás:

    — Eu já disse pra você não me chamar de filhinho. E eu quero SARDA!

    Ilustração Guazelli

    Moldura

    Encontra uma ex-namorada artista plástica na avenida Paulista. Ela pergunta pra onde ele está indo. Pro Masp. Ela está adiantada pro compromisso que tem ali perto e entra com ele no museu. Param diante de um autorretrato de Rembrandt.

    — Que moldura linda! Que moldura maravilhosa! — ela diz.

    E passa a mão na madeira entalhada, em êxtase total.

    Ombro

    Em pé, ela fumava um cigarro na calçada do bar ao lado do restaurante onde eu bebia, sozinho, à espera de amigos. Usava uma blusa preta que deixava seu ombro à mostra, e seu ombro era branco. De um branco lento, leitoso, abundante, sem interrupções. Branco como o vermelho é vermelho e o dourado foi de Brigitte Bardot. Branco como um cartão-postal da Grécia — a encosta clara de uma ilha grega solta na noite paulistana.

    Era o branco mais puro sobre a Terra e não ostentava nenhum selo de "100% BRANCO".

    Longe

    Tédio passa longe. Depois de oito anos juntos, minha namorada começou a surfar. Desce uma vez por semana com uma amiga até o Guarujá e pega onda. Volta exausta mas transformada, com o olhar de uma alegria assassina —de quem vê coisas extraordinárias. Tenho vontade de lhe perguntar o que ela vê. Mas já existem palavras demais na minha vida. E bom mesmo é mirar o mistério nos seus olhos.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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