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    Fabrício Corsaletti

    Brancura

    24/08/2014 02h00

    QUANDO

    Quando a manhã dura o dobro do tempo. Quando a noite tem o tamanho certo. Quando o sonho te leva pra uma estação de águas que é um pantanal japonês impressionista. Quando o sexo é forte. Quando você vê de fora a sua própria loucura. Quando você acredita que pode viver muitos anos. Quando as folhas da amendoeira se entregam completas no espaço. Quando o ar deixa de ser uma abstração. Quando você respira. Quando você bebe água. Quando você adora nuvens. Quando você se dá conta de que não compreende o mar.

    *

    Ilustração Guazelli

    QUARTO

    Cortina branca de cambraia de linho. Luz filtrada. Espaço suspenso com brisa. Onde respiro sem dificuldade e me movo com prazer. Nem faltam as cores da mulher que amo. Seu pescoço infinito. Seu cheiro doce e ancestral. Vindos de longe, farejando em círculos, aos poucos se aproximam os chacais.

    *

    PALAVRAS

    Borracha. Franja. Lapiseira.
    Vadia. Tablete. Madrugada.
    Telhado. Pimenta. Toblerone.
    Netuno. Nevasca. Gafieira.
    Trovão. Corisco. Vatapá.
    Ravina. Atalaia. Arcobotante.
    Pulmões. Sergipano. Sentinela.
    Garrafa. Cachaça. Tornozelo.
    Calcanhar! Calcanhar! Calcanhar!

    *

    PULSEIRAS

    Essa é de Búzios. Essa é de Lyon. Essa é de Moçambique. Essa é da Bolívia. Essa é de Montevidéu. Essa é do largo da Batata. Essa é de Cuba. Nunca fui pra Cuba. Ganhei de uma amiga que foi pra lá. Essa é da Colômbia. Essa é de Olinda. Essa eu não lembro. Essa é uma promessa que eu fiz.

    *

    RISADA

    Ele gostava da risada dela. Queria trepar com ela, ou melhor, com sua risada. Mas só conseguia trepar com seu corpo. Ela achava aquilo engraçado e ria. Ele ficava com tesão e tentava de novo. Ela se excitava com a ideia de que a loucura dele a fizesse rir. E assim passaram juntos muitos anos.

    *

    SOMBRINHA

    Na Liberdade, depois do jantar, ela entrou meio bêbada numa loja de quinquilharias e comprou uma sombrinha lilás com flores brejeiras pintadas à mão. Uma daquelas sombrinhas orientais em que -diferentemente dos guarda-chuvas convencionais, com sua lona côncava- as hastes, quando abertas, formam um ângulo de quase noventa graus com o cabo de madeira clara. Uma sombrinha minimalista como um sushi e lírica como um haicai. Ela perguntou o que ele achava. "Perfeita", ele disse. E pensou que agora não lhes faltava mais nada. Nem precisava chover.

    *

    ROSTO

    Uma pessoa, sim, mas também um rosto. A expressão desse rosto. A intimidade dessa expressão. Há uma década ao seu lado. Ele não se acostuma completamente. Às vezes, claro, a vida estúpida. Mas a maior parte do tempo: aquele rosto amado. Com uma pessoa por trás. Que ele não alcançará nunca. O peso da palavra "nunca". Glavaradrasxingó!

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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