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    Fabrício Corsaletti

    Centro

    19/10/2014 02h00

    FAROL

    Um prédio velho de poucos andares no centro de São Paulo com todas as janelas voltadas pro largo em frente. A cada andar uma galeria de arte e no último um bar de drinques com muitas mesas e cadeiras de fórmica colorida, canecas de cerâmica da Festa do Chopp de Blumenau entre samambaias que pendem dos armários, velas em vidros de maionese bregamente românticos ou romanticamente bregas, caixas de som e microfones da década de 50 e quatro belos pilares modernistas. Do terraço se veem árvores imensas e silhuetas de construções decadentes recortadas contra um céu cor-de-rosa que já foi apocalíptico mas hoje é apenas uma das formas da indiferença do universo pelo seu próprio destino e pelo nosso. Uma das curadoras explica seu trabalho com crianças de escolas públicas. De repente sai com um amigo ou namorado pra resolver não sei o que na cracolândia. Há camisas floridas, vestidos cavados, tatuagens e bigodes pontiagudos. Um escritor fala uma prosa poética e despretensiosa inspirada numa canção de Serge Gainsbourg, que toca ao fundo e continua a tocar depois que o texto acaba e o escritor deixa o palco pra dançar com a namorada. Todos se levantam e dançam também.

    A curadora volta da cracolândia e narra cenas pesadas envolvendo a polícia e os traficantes. Diz que não é bem curadora mas professora e quer ser artista. Diz que o bar não é aberto ao público porque não tem alvará nem escada de incêndio. Diz que o centro é difícil, mas o prefeito apoia iniciativas de ocupação como aquela. Minha namorada me avisa que o táxi chegou. Descendo a escada, leio num cartaz: "ME RESPEITE DEPOIS DE ME USAR". Penso: respeito. E em seguida: estou com fome. Como uma maçã e durmo. Sonho que meus pratos são roubados - os pratos que pertenceram à minha avó. Passo o dia me desprezando por ter sonhado tão mal.

    Ilustração Guazzelli

    *

    LANCHONETE
    Uma garota de classe média tomando vitamina e mordiscando um pão de queijo no mesmo espaço em que cinquenta operários da construção civil comem feijoada e falam alto. Os uniformes são azuis. Os fones de ouvido são laranja. Quase todos pretos. Ela, muito branca.

    *

    DELICADEZA
    Uma mulher delicada, entre colegas de trabalho, a caminho do restaurante por quilo mais próximo. Não é frágil, refinada ou bela. É delicada. E está tranquilamente decidida a não abrir mão da delicadeza.

    *

    CORAZÓN

    A morte feliz: aos 90 anos, rodeado de netos não particularmente selvagens, tomando vinho às onze da manhã de um sábado de sol à espera de amigos, sentindo o cheiro bom de uma moqueca de arraia, olhando as nuvens pela janela aberta e ouvindo no último volume "Corazón Espinado", em "Supernatural", de Carlos Santana, cof, cof, cof.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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