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    Fabrício Corsaletti

    Desejos

    25/01/2015 02h00

    Homerinho

    Vou completar 27 ou 28 anos e resolvo comemorar meu aniversário num boteco de esquina na rua Arthur de Azevedo, em Pinheiros. Além dos meus convidados, há uma mesa de pessoas vagamente conhecidas –dois arquitetos obesos, um pandeirista chato e uma professora universitária aposentada– que bebem no Lua Nova dia sim, dia não.

    No fim da noite nos damos conta de que enquanto bebíamos e conversávamos em pé na calçada alguém fez a rapa dentro do bar: casacos, bolsas e mochilas abandonados nos encostos das cadeiras desapareceram. O dono do bar não viu nada e a professora, bêbada, me pergunta se eu a estou acusando de alguma coisa. O pandeirista canta um samba sobre o roubo de um cabrito. Metade dos meus amigos vão embora.

    Ilustração Guazzelli

    Uma amiga começa a chorar. Levaram a chave do seu carro, que ela tinha guardado dentro do copo de guardanapos. Chamamos o guincho e esperamos. O pandeirista passa por nós sorrindo e gingando de maneira ridícula, teatral –está sempre arrotando sua ascendência portelense, na qual não acredito.

    Digo ao dono do bar que amanhã de manhã sem falta apareço pra pagar a conta. Como garantia, deixo os presentes que recebi e que ele guardou atrás do balcão. Ele não gosta mas é obrigado a aceitar minha oferta. O guincho ainda não chegou quando entro no táxi com a minha namorada. Ficam alguns amigos pra fazer companhia pra dona do carro (estou bebendo há dez horas e não tenho condições de ser gentil).

    No dia seguinte vou trabalhar de ressaca. Na hora do almoço a secretária me chama. Desço e encontro o Homerinho, um amigo 30 anos mais velho, que ontem felizmente foi pra casa cedo, antes do arrastão. Ele me entrega uma sacola grande, cheia e pesada, dentro da qual logo reconheço minha jaqueta de couro, e diz (ele chamava todo mundo pelo nome completo): "Fabrício Corsaletti, não me pergunte o que essas coisas estavam fazendo comigo". Depois entra no carro com a cara mais esquisita desse mundo e passa meses sem telefonar.

    Pessoas

    Pessoas que não mudam. Pessoas que você reencontra depois de muitos anos e algumas crises que você temia que te quebrassem em dois e quebraram. Pessoas que nunca se quebram. Que cuidam do mundo enquanto você está ausente. Pra que ele não se deforme de acordo com a sua loucura. Pra que ele continue igual, indiferente aos seus desejos. Pra que ele siga o seu curso e você compreenda quão pouco tem a ver com essas pessoas.

    Sonho

    Na semana em que termino de ler uma de suas comédias: noite de 1599, céu de Shakespeare! Como uma tela de Da Vinci restaurada – sem o verniz envelhecido ao longo de quatro séculos. Estrelas cadentes paradas, te esperando.

    Fácil

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    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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