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    Fabrício Corsaletti

    Excêntricos

    29/03/2015 01h55

    Telhado
    No dia mais quente do ano, ela abriu as folhas descascadas da janela do quarto e estendeu uma toalha de banho sobre o telhado do vizinho, que tapava metade da sua vista e acabava dois palmos abaixo do batente, numa calha cheia de bitucas de cigarro. Era sábado e ela não tinha dinheiro, embora sentisse uma vontade vadia de sair de casa e se divertir. Vestiu um biquíni, pegou os óculos escuros e deitou de costas na toalha —o rosto voltado pro apartamento, os braços pro alto formando um losango, as pernas abertas e estendidas em cima do batente.

    Passou a manhã ali, levantando às vezes pra ir até a cozinha beber água ou mordiscar um pedaço de banana. Na sua espreguiçadeira improvisada, leu uma revista de fofocas, pensou em ligar pro cara com quem saiu na quinta-feira (estava separada há seis meses), mas desistiu, raspou os pelos das canelas com uma lâmina de barbear e ao meio-dia tomou a única lata de cerveja que encontrou na geladeira.

    Ilustração Guazzelli

    Quando a fome bateu fez espaguete com tomate picado, pimenta-do-reino e azeite, cobriu tudo de queijo ralado e sentou no sofá pra ver televisão. Antes que terminasse de comer veio um sono pesado; então botou o prato no chão (o ex-marido tinha levado a mesinha de centro), se ajeitou como pôde na almofada minúscula e dormiu profundamente a tarde inteira.

    Chapeleiro
    É chapeleiro. Tem uma chapelaria na Augusta, quase esquina com a Dona Antônia de Queirós. Já saiu em tudo que é jornal, é um chapeleiro famoso. Deve ter uns 80 anos, talvez mais. É branco-vermelho como um inglês. Se veste como um inglês antigo. É chapeleiro e alfaiate; confecciona as próprias roupas.

    Toda manhã eu o vejo, sentado numa cadeira de plástico na calçada do boteco do outro lado da rua, lendo jornal. Usa uns óculos grossos sob a boina bege. Almoça sempre pelo bairro.
    Parece cego ou iluminado, no meio de tanta gente diferente —diferente dele principalmente—, que desce da Paulista pro centro e sobe do centro pra Paulista. Como ele vê essas pessoas? Simpatiza com elas, como um gringo no Carnaval, ou as despreza, como um europeu do século 19 numa colônia qualquer no fim do mundo? O quanto se sente brasileiro?
    Anda já com certa dificuldade, apesar de grande e forte. Tenho a impressão de que, quando o Baixo Augusta finalmente for dominado pelos grotescos empreendimentos imobiliários da elite branca, ele não estará mais aí. Espero estar enganado. Pois o velho chapeleiro faz, e faria ainda mais, bem à paisagem.

    Neblina
    Na descida da serra. Não aquela neblina parada, nossa velha conhecida, na qual entramos quase sem perceber e da qual nos damos conta observando a ausência dos carros e das placas de sinalização, cobertos de névoa branca. Mas uma neblina movediça, que cruzou a estrada como o fantasma de uma cachoeira, lentamente do vale em direção às montanhas, contra as quais se chocou e desapareceu.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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