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    Fabrício Corsaletti

    Dinheiro

    03/05/2015 02h00

    Adoro dinheiro, sei muito bem o que fazer com ele, gasto o que cair na minha mão sem o menor pudor e com grande prazer, mas infelizmente não tenho talento pra ganhá-lo. Deus dá asa pra quem não sabe voar. Ou Deus não dá asa pra cobra?

    Ontem porém tive a minha segunda ideia pra ficar rico. Antes, vou contar a primeira, que tem mais de dez anos e que, já deu pra perceber, foi um fracasso completo. Era o seguinte: levar um, dois, infinitos caminhões cheios daqueles limpadores de mesa que são nano feiticeiras pra Buenos Aires e transformar pra sempre os hábitos de higiene dos portenhos.

    É que, em 2005, quando passei uma temporada longa na Argentina, nunca vi em casa nenhuma a tal invenção, que, acabei de ser informado pelo Google, leva os nomes de "mini feiticeira", "escova de mesa" ou (coisa linda) "papa migalhas". Cheguei a encomendar uma pra minha mãe aqui no Brasil; queria mostrar pros meus amigos hispanohablantes de que catzo eu estava falando; mas ela se recusou a pactuar com a minha "ideia de jerico".

    Ilustração Guazzelli

    Pra azar da nossa família, pois vejam como são as coisas: dali a um ou dois anos Buenos Aires foi invadida pelas papa migalhas –e algum brasileiro mais esperto do que eu deve, nesse momento, tomar banho com champanhe francês, enquanto eu e minha mãe... Mas vamos deixar minha discreta progenitora neste quarto parágrafo e partir pro meu segundo insight no terreno das finanças.

    O plano é desmontar minha biblioteca, que ocupa um dos dois quartos do apartamento onde moro, me desfazer de metade dos livros, guardar a metade restante na sala e no quarto de dormir, e encher o cômodo vazio dos objetos mais banais da nossa época: garrafas pet, prendedores de roupa, apontadores de lápis, cinzeiros, garfos, bolachas de chope, móveis das Casas Bahia, colheres de pau, escorredores de macarrão, copos americanos, escovas de dente, cabides, estatuetas de Iemanjá, sacolas plásticas de supermercado, sacos de papel da padaria, saca-rolhas polichinelo, celulares, preservativos, CDs, DVDs, cadernos, lâminas de barbear, Novalgina 1g, cortadores de pelo de nariz, rodinhos de pia etc. etc. etc.

    Daqui a 30 anos essa tralha toda valerá uma fortuna, e eu hei de vendê-la pra algum milionário interessado no cotidiano do homem comum da primeira metade do século, com a qual abrirá o Museu das Pequenas Coisas, visitado por milhões de turistas estupefatos.

    Mas eles jamais saberão que a essa altura, próximo dos 70 e depois de passar por duas operações de safena, estou vivendo com uma pintora e massagista japonesa na última praia deserta do Mediterrâneo, numa casinha de paredes caiadas a poucos metros do mar, aparelhada apenas com meia dúzia de livros de poesia, uma geladeira de cervejas, um galão de azeite, um pote de manteiga e dois pares de chinelo —um 43 e um 34.

    Lá, entregues a um desejo simples e constante, a uma tristeza natural e suportável, a saudades sem mágoa e a angústias sem culpa, nós te maldiremos e te esqueceremos, vil metal.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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