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    Fabrício Corsaletti

    Esperas

    17/05/2015 02h00

    Fritura

    Todos gostavam de fritura. Todos menos um gostavam de fritura. Todos menos 28 gostavam de fritura. Alguns gostavam de fritura. Só dois ou três gostavam de fritura. Por isso se sentiam esquisitos, mas principalmente muito especiais. Passaram o resto da vida comendo fritura, escrevendo sobre fritura, lutando pela causa da fritura. Não tinham ninguém no mundo, a não ser os parceiros de fritura.

    Era comovente. Mas um pouco irritante também.

    Lanchas

    Lanchas brancas no mar verde-esmeralda. Deixam atrás de si um rastro de espuma –agora um pouco dourada, pois o sol começa a cair. Posso esquecer que foram compradas com os dentes dos pobres? Mas também não sou capaz de ignorar sua poesia. Guardá-las em algum lugar entre o inconsciente criminoso e os olhos analfabetos. E esperar.

    Guerra

    Quando passaram pela última aldeia encontraram um homem sentado no chão, encostado no tronco de uma árvore, com as pernas sangrando. Tinha sido metralhado da cintura pra baixo. Pediu aos meninos que lhe arrumassem um pedaço de pau —"pra espantar as hienas"— e depois apontou o caminho pra Etiópia.

    Pote

    O que eu queria mesmo era botar num poema o pote de manteiga onde o chapeiro da padaria da esquina enfia sua colher-espátula a fim de tirar um naco amarelo-cremoso que ele espalha no miolo do pão francês cortado ao meio antes de deixar as duas metades em cima da chapa quente. Aquele pote imenso de manteiga.

    Escrever

    Passar de um verso pro outro como quem dobra esquinas numa cidade estrangeira. Nas ruas sem saída, procurar pela única luz acesa e abrir a porta onde se lê "OPEN" —todo bar é um mistério. Escolher uma mesa perto da janela, pedir cerveja ou vinho e olhar lentamente em volta— lá!

    Chiclete

    Vejo a vendedora de chicletes, de sete ou oito anos, negra, parar de mesa em mesa, com seu vestido rosa-choque e um sorriso metade encenado, metade sincero. Eu também tenho mentido um pouco. Ela se aproxima e pergunta se quero comprar um chiclete. Não quero. Ela ri, me dá um tablete de presente e sai. Claro que vai voltar e insistir, penso. Não volta.

    Ilustração Guazzelli
    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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