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    Fabrício Corsaletti

    Culpadas

    15/11/2015 02h00

    Ilustração Guazzelli
    #ARSAO1511 FABRICIO

    Hoje, ainda dentro da campanha #AgoraÉQueSãoElas, passo a palavra pra quem entende do assunto. Com vocês, Noemi Jaffe *:

    - Os meninos riram e disseram que eu não podia ter sentado no colo do Alexandre, no cinema.

    - A Sandra disse que, na rua da Graça, havia mulheres que vendiam suas calcinhas por cinco cruzeiros e que os meninos da classe iam lá comprar.

    - Quando eu sangrei, no acampamento, me assustei muito, mas a Noêmia disse que isso era normal entre as mulheres.

    - Meu pai dizia que, num casamento, a mulher deve ser sábia e fazer com que o homem acredite que ela é submissa.

    - O Walter fazia mágicas e pediu para eu levantar a blusa. Se eu não levantasse, ele me transformaria num bicho feio.

    - A Carla só descobriu que estava grávida no quinto mês de gravidez. O rapaz de quem ela engravidou tinha sumido.

    - A Bernardete foi estuprada no caminho de casa. Quando chegou, teve vergonha de contar para a mãe.

    - A Cris disse para a Taís que era melhor elas se calarem, porque ninguém acreditaria nelas e elas ainda poderiam perder o emprego.

    - O delegado Mário perguntou para a Suzana se ela sempre saía daquele jeito na rua e que era para ela se preparar, se não estivesse disposta a mudar de comportamento.

    - A filha da minha vizinha, Gláucia, foi ameaçada com uma faca e saiu correndo, pedindo ajuda. O moço que passou achou que ela fosse meio louca.

    - A Virginia disse que a uma mulher bastariam um quarto e 50 libras, coisas impensáveis para uma mulher no início do século 20, para que ela pudesse se tornar uma escritora.

    - O Flávio disse a Joana que ele já fazia muito: afinal, levantava todas as noites para trocar a fralda do bebê.

    - No parque, a Claudia me recriminou por eu amamentar em público. Disse que tudo bem, tudo bem, mas que muito bonito não era, eu tinha de concordar.

    - Disseram que o tal do Saul, o estuprador, até que foi bonzinho, porque falou que se ela ficasse calada ele não lhe faria mal. Ela concordou.

    - Ele era diferente do outro, o Mário, que gostava de machucar mesmo.

    - Você viu que a Selma engravidou de um estuprador e tirou o bebê? Deve ser conversa dela.

    - A personagem da Clarice se matou quando descobriu que o dente da frente tinha quebrado. A outra se prometeu, mas não cumpriu, que não prepararia mais o jantar para o marido todos os dias.

    - O Alex brigou com a Gisela, porque sempre faltava alguma coisa na mesa.

    - O Milan disse que, se na época de Dostoiévski o culpado sempre procurava a punição, na época de Kafka a punição sempre procura os culpados.

    - O Kafka, no romance "O Processo", escreveu que o personagem K precisava se defender de um crime que ele mesmo desconhecia.

    - A Madalena chorava e sua mãe consolava, dizendo assim: "Pobre não tem valor; pobre é sofredor, e quem ajuda é o senhor do Bonfim".

    - O deputado Cunha é líder religioso. Ele tem uma conta na Suíça. Ele encaminhou um projeto de lei para dificultar o acesso ao aborto por estupro, legal no país. Com esse projeto as mulheres estupradas, para serem atendidas no SUS, precisarão passar por um exame de corpo de delito.

    *Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária -escreveu "Írisz: as orquídeas" (Companhia das Letras, 2015), entre outros. Ela integra a iniciativa #AgoraÉQueSãoElas, em que mulheres escrevem
    no lugar de colunistas homens a convite deles.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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