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    Fabrício Corsaletti

    Bola

    06/03/2016 02h00

    No lindo gramado diante do mar, a pousada tinha duas pequenas traves de PVC com rede e tudo, mas não tinha bola. Não jogo futebol há vinte anos, mas quando vi os golzinhos de bobeira fiquei com vontade de dar uns chutes. Pensei em comprar uma bola qualquer no centro da cidade. Depois lembrei de amigos com tornozelos e joelhos destroçados em peladas de fim de semana e desisti.

    Certa manhã, ao lado da espreguiçadeira onde eu lia um romance deprimente, um pai e o filho de oito ou nove anos tratavam com excessiva delicadeza uma bola colorida. Pelo sotaque, eram argentinos. Quase levantei pra puxar conversa, contar que morei em Buenos Aires —com sorte me convidavam pra jogar. Mas tive pudor de atrapalhar aquele momento de intimidade entre pai e filho.

    Ilustração Guazzelli

    À tarde, porém, voltando de uma das praias do outro lado da ilha, topei por acaso com um saco de bolas em frente a uma papelaria. Pedi pro amigo que dirigia parar. Escolhi a mais firme, preta e branca, de borracha —um clássico—, e ao entrar no carro não era mais o mesmo.

    Com aquela bola simples e perfeita sobre as pernas, senti todo o peso de ser um homem responsável (há quem duvide que eu tenha chegado a tanto) se evaporar no ar salgado e indiferente. Mudo, sem prestar atenção no papo dos três adultos que me acompanhavam, eu só queria saber dos gols que faria dali a pouco —numa alegria paralela à das ondas. Meus 12 anos renasciam das cinzas. Meu corpo pesado estava tinindo de novo.

    Na pousada, deixei o chinelo e a mochila com a namorada e corri pro campinho com a bola embaixo do braço.

    O menino portenho estava lá, perdido, procurando alguma coisa atrás do gol. Eram caracóis, que ele dispunha numa longa fila em cima da cerca de madeira que separava o gramado da praia. Perguntei se queria jogar. Não respondeu. Chutei a bola pra ele e ele chutou de volta pra mim.

    Combinamos as regras: gol só dentro da grande área e defesa com as mãos só dentro da pequena área —marcamos as linhas com chinelos e camisetas. Cinco vira, dez acaba.

    O moleque era melhor do que eu imaginava e em poucos minutos estava 3 a 1 pra ele. Mas eu não estava ali pra brincadeiras. Fiz, não me orgulho, algumas faltas quase graves. E não consegui evitar uma gargalhada abjeta após lhe dar um chapéu e marcar mais um. Placar final: 10 a 3 pra mim.

    Então seus olhos se encheram de lágrimas. Foi até a cerca examinar os caracóis e na volta me desafiou a encarar outra partida. Disse que um dia seria jogador da seleção e que nunca perdia pros amigos do pai, velhos e barrigudos como eu. Devia ser verdade, pois dessa vez ganhou de 10 a 0.

    Um dos meus melhores chutes ele defendeu com um salto de tigre digno de um Neuer, o goleiro alemão. Ao ficar em pé, disse:

    - Piensan que soy arquero, pero soy jugador!

    Esse momento de excessiva vaidade quase me fez reativar o modo agressivo-demente de antes. Mas agora o encanto estava quebrado e eu era apenas um tiozão à beira de um enfarte brincando com um menino corajoso nas férias de verão. Sua mãe apareceu, nos apresentamos, fiquei sabendo que o meu amigo se chamava Bautista. Um bom nome de jogador.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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