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    Fabrício Corsaletti

    Janelas

    23/10/2016 02h00

    Ilustração Pedro Piccinini

    Cravo
    Era um bar de madeira fosca e paredes de vidro numa esquina clara de Buenos Aires que, nos dias nublados, ficava quase fosforescente. Entrei dez anos depois com minha mulher no meio da tarde, ambos mortos de fome. Pedimos milanesas e salada mista, uma garrafa de vinho tinto e outra de água mineral. Fiquei observando seu antebraço escuro cheio de pulseiras prateadas com padrões cor de laranja. Ela abriu uma sacola e me mostrou algumas compras: um vestido, cadernos, talheres feitos de chifre de boi. A essa altura o álcool já fluía deliciosamente pelo sangue. Lamentei ter parado de fumar quando terminamos de comer. De manhã tínhamos visitado o Museo Nacional de Arte Decorativo. Na tampa de um cravo do século 18, decorado com cenas cotidianas pintadas a óleo, um casal passeando pelo campo chamou nossa atenção. Pareciam correr ao ar livre, bêbados e alegres, embora não desse pra ver nenhum detalhe das figuras, meros borrões cor de mostarda. — Bêbados e alegres correndo pelo campo de uma pintura do século 18. Semanas antes de uma tristeza infernal.

    *

    Centro
    Penso em mudar pro centro da cidade. Eu saberia viver junto aos prédios descascados. Andar pelas ruas de onde o tempo varreu a mentira das cores. Sentir no fim da tarde raiva ou desejo sexual misturados à buzina dos carros e aos gritos dos loucos e dos camelôs. — O cheiro maravilhoso do espetinho, minha última esperança! — De uma janela sem cortinas olhar as sacadas com varais improvisados: a beleza do corpo nu, a beleza do corpo vestido. Escrever de manhã sobre o que vi de noite e sempre. Com meu café coado depois do pão com manteiga. Diante de um laptop conversível — neste apartamento cravado em cima de um bar.

    *

    Bolo
    Minha avó fez um bolo de cenoura pra receber as amigas, velhas parentes que moravam do outro lado da cidade e a visitavam uma vez por ano. Quando a campainha tocou, tive uma ideia: roubei o bolo do forno e o coloquei em cima da tampa da privada do banheiro do quarto da minha avó. As velhas sentaram na mesa da cozinha e minha avó foi pegar o bolo pra servir com café. Ficou desesperada. Vasculhou os armários e as gavetas. Veio até a sala, onde eu brincava com alguma prima e flagrou meu olhar doentio. Rindo mas já arrependido, eu disse onde estava. Ela ficou ainda mais desesperada, pois não sabia mentir e acabou contando tudo pras colegas. Por sorte, eram o que as pessoas elegantes chamam de pessoas simples (o que não diz nada sobre as pessoas "simples", mas diz muito sobre as pessoas elegantes) e comeram o bolo sem grandes dramas.

    Existe outro bolo escondido, que não me deixa dormir. Chegou a hora de jogá-lo na mesa. Vamos ver no que dá.

    *

    Margens
    O mar tem margens. Janelas têm margens. Revólver tem margens. Minha liberdade, infelizmente, tem margens. (O ar, no entanto, circula onde quer.)

    O céu não tem margens.

    Os olhos da minha namorada não têm margens.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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