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    Fabrício Corsaletti

    Escura

    08/01/2017 02h00

    Pedro Piccinni

    É uma loja grande e escura no centro da cidade, uma quadra abaixo da estação de trem. Quando visito a família, entre um churrasco e outro vou até lá pra olhar as gôndolas atulhadas de baldes, bacias, chaves de fenda, garfos, colheres, facas "de folha", afiadores de vários modelos, pedras de amolar, parafusos, porcas, pregos, chapéus de palha, borzeguins, rolos de corda, rolos de arame liso e farpado, mangueiras de borracha, churrasqueiras, copos, pratos, espetos, pegadores, canecas, canivetes, facões, balaios, enxadas, carriolas, rastelos, pás, moringas de barro (com adornos vermelhos), latões de lixo, sacos de cimento, samburás, anzóis e varas de pescar.

    Às vezes volto pra casa dos meus pais com objetos que dificilmente vou conseguir usar em São Paulo, e que vão dar trabalho pra acomodar no ônibus; mas em geral só compro mesmo um dos afiadores de faca, pra dar de presente a algum amigo cozinheiro, e uma das tais facas de folha, que enferrujam de maneira pouco higiênica, embora peguem rapidamente o melhor corte.

    É uma loja grande e escura, eu dizia, no centro da cidade onde nasci, e dentro dela me sinto protegido, distante da neurose e dos problemas, sonhando com uma das vidas que não tive e me esquecendo da vida real em que me perco enquanto a atravesso e sou por ela atravessado.

    Tem meia dúzia de atendentes, conheço dois ou três pelo nome, e o dono do lugar é sempre simpático comigo —já conversamos mais de uma vez sobre faroestes clássicos. Sabe que gosto do seu negócio, que se me mudasse de novo pra lá seria seu freguês. Mas também sei que me veem como um tipo que há 20 anos vive na capital, que a essa altura é mais metropolitano que interiorano, um cara talvez meio esquisito, ou apenas ridículo, que se interessa por coisas de que não precisa, coisas das quais não entende nada.

    De vez em quando penso em largar tudo e virar sitiante. Me enfiar no meio do mato e ficar cavoucando; passar o dia sem falar uma palavra e de noite ouvir música sem letra na varanda. Mandar e-mails, chorar um pouco, desejar morrer.

    De vez em quando penso que no fundo o que eu queria era ser artista plástico. Ter um ateliê cheio de ripas de madeira, latas de tinta, pincéis, serrotes, martelos, goivas. Triturar, colar, secar, pendurar na parede. Compor no espaço —não no tempo.

    Mas acho que estou exagerando um pouco.

    Da última vez gastei uma eternidade olhando uma caneca de alumínio. Não a coloquei na cesta de compras. Pra ser sincero, mal consegui tocá-la. De repente minha existência pareceu absurda, e eu teria que trocar de roupa e de pele antes de usar aquela caneca industrial. Ou pelo menos pintar de outra cor as paredes da sala. Era trabalho demais, desisti.

    Agora tenho uma caneca imaginária —que brilha na sombra quando bebo água.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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