• Colunistas

    Wednesday, 08-May-2024 21:04:26 -03
    Fabrício Corsaletti

    Fralda

    05/02/2017 02h00

    Pedro Piccinini

    Ele queria livros emprestados. Tinha planos de começar a escrever. Mas principalmente queria ler boa literatura. "Nada de beatnik tomando pico de heroína no banheiro ou nego doido fazendo suruba no quarto da sogra. Disso eu já vi o suficiente. Também não tô com saco pra literatura brasileira. Me arruma uns desses gigantes aí, Dostoiévski, James Joyce."

    Sem problemas. Entrei no escritório e olhei as estantes. Pra começar, "Matadouro 5", de Kurt Vonnegut, "Franny & Zooey", de J. D. Salinger, "Tanto Faz", de Reinaldo Moraes (mesmo sendo brasileiro, resolvi arriscar), "Iniciantes", de Raymond Carver, e "Amuleto", de Roberto Bolaño.

    Devorou tudo em menos de dois meses. Dessa vez levou Philip Roth, Virginia Woolf e Kafka. Na seguinte: Tchekhov, Poe, "Memórias de um Sargento de Milícias", Dickens e Jane Austen.

    Depois vieram Borges, Cortázar, Felisberto Hernández. Adorou Maupassant, Mark Twain e Italo Calvino. Quando leu Faulkner, disse que nunca mais queria ler Bolaño. Entrou de cabeça em Dostoiévski e ficou perturbado. Se encheu um pouco do "Ulysses" mas foi até o fim. Ouviu dizer que Proust é que era o cara e dedicou um semestre ao "Em Busca do Tempo Perdido".

    Então enchi uma sacola só com poetas: Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Szymborska, Angélica Freitas, Matilde Campilho, Byron, Cummings, Eliot, Baudelaire, Chacal, Nâzim Hikmet. Virou fã dos três últimos.
    Da prosa brasileira contemporânea (a essa altura, não recusava nada), curtiu o "Diário da Queda", do Michel Laub, e o "Budapeste", do Chico Buarque, que ele chama de Chico Buraco.

    Passou por Homero, Cervantes, Shakespeare e Voltaire. Voltou pros séculos 19 e 20. Se surpreendeu com Machado e Graciliano.

    Neste momento, está lendo "Tarás Bulba", do Gógol (anoto suas leituras num caderno). "Aqueles cossacos malucos", ele diz.

    Quem vê o Fralda não acredita. Baixista de bandas punks (Ratos de Porão, Blind Pigs, Lobotomia), parece mais um líder dos Hells Angels do que um leitor compulsivo e vagamente aristocrático, que prefere Balzac a Hunther Thompson.

    Mora nos fundos de um estúdio de música de uns amigos e trabalha numa loja de vinis em Perdizes, onde faz a faxina e tira chope artesanal; tem 40 anos e uma semibarriga de cerveja; tatuou na testa a frase "STONE DEAD FOREVER" e usa mais pulseiras e colares que uma falsa baiana de acarajé de shopping.

    Às vezes, tenho a impressão de que trata o próprio corpo como se fosse uma galeria de arte —é uma performance ambulante. Minha mulher diz que ele tem uma noção forte de estilo. Mas acho que o Fralda (aliás, Christian Wilson, embora assine os e-mails como "tia Fralda") daria risada dessa conversa.

    Na semana passada, veio me devolver o Karl Ove e pegar uma nova leva. Fumando um cigarro enquanto esperava a chuva passar, contou de uma época em que dormia num "catre" na cozinha da casa da avó. E antes que eu demonstrasse qualquer estranhamento por aquela palavra tão pouco underground, ele interrompeu a história e perguntou rindo, orgulhoso:

    - Gostou de "catre", animal?

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024