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    Fabrício Corsaletti

    Cidades

    26/03/2017 02h00

    Ilustração Pedro Piccinini

    PERAMBULE

    Caminhei muitas vezes em Santo Anastácio, de trevo a trevo e nas estradas de terra, com meus pais ou com amigos. Com minha namorada caminho aos sábados no parque da Água Branca. Em 2001 caminhei na serra da Canastra, apavorado, pensando que algo terrível aconteceria, e aconteceu. Uma vez, ao sair de uma festa, fui do largo da Batata à Vila Mariana caminhando. Quando morei em Buenos Aires praticamente só bebi e caminhei. (Em Paris não foram caminhadas, porque eu estava gripado, querendo apenas chegar logo aos lugares —e ver.) Em Amsterdã, confundindo os canais, levei quase três horas pra reencontrar o caminho do hotel. De madrugada, em San Pedro de Atacama, caminhei sozinho sob a lua cheia, com falta de ar e me sentindo morto.

    Às vezes, depois de fechar um poema, vou até a padaria como se desse a volta ao mundo.

    Houve um período em que me chamavam de Manco.

    ROMANCE

    Vende, em Paris, ostras da região da Bretanha. Trabalha sozinha numa venda que de noite é restaurante —paredes azuis, cinco mesas, pôsteres do litoral francês, alguns títulos de vinho branco e um velho aparelho de som com uma pilha de CDs em cima. Com um abridor de ostras atrás de um balcão que cheira a fundo de mar, trabalha como uma heroína de romance do século 19 —se o século 19 pudesse ser o século 21, e ela fosse livre pra sorrir sinceramente enquanto diz "que bom que gostaram", e em seguida contar com humor uma história mais ou menos terrível, enxugando as mãos na blusa gasta de lã cor de tomate, sem que isso seja de forma alguma repugnante, pelo contrário, mas sem que isso seja de forma alguma sensual. Se o romance fosse bom e se chamasse "A Vendedora de Ostras da Rua de Chabrol".

    RUA
    Acho que vou me apaixonar por uma rua. Quatro quadras de vida banal fervilhante. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Tem luz verde-escura, prédios de médio porte. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Uma vitrine de perucas e uma balança centenária. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Um "pixo" vermelho onde se lê "DESDÊMONA". Acho que vou me apaixonar por uma rua. Mais ou menos uns cinco pê-efes decentes. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Dois cafés berlinenses e uma galeria de arte. Acho que vou me apaixonar por uma rua. De tarde estudantes bebendo cerveja. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Espero jamais me apaixonar por uma estudante. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Talvez o melhor acarajé do Sudeste. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Velhos mafiosos que lembram Buenos Aires. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Uma velha que ainda faz a conta no lápis. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Peões de botina e designers viajados. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Um restaurante italiano com uma janela grande e alta. Acho que vou me apaixonar por uma rua. O que me excita no verão são essas nuvens dilatadas. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Esse túnel de vento bem no meio do inferno. Acho que vou me apaixonar por uma rua. Como uma vez me apaixonei por uma mulher.

    CENA
    Leonard Cohen comendo um Big Mac com fritas e bebendo uma garrafa de vinho francês no estacionamento do McDonald's depois de meses de isolamento num mosteiro budista.

    - Seja feliz.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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