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    Fabrício Corsaletti

    Outono

    23/04/2017 02h00

    Pedro Piccini
    Ilustração para coluna de Fabrício Corsaletti na revista sãopaulo de domingo (23.4.17).
    Ilustração para coluna de Fabrício Corsaletti na revista sãopaulo de domingo (23.4.17).

    Samurai
    Na primeira manhã em que não vai trabalhar, o aposentado se dá conta de que pode tomar uma cervejinha antes do almoço e entra no primeiro restaurante que encontra pela frente. "Sou um samurai", pensa, "um guerreiro medieval, sem patrão e sem medo, enchendo a cara nas estalagens do mundo". À tarde caminha pelo bairro onde vive há décadas, surpreendendo-se com coisas em que nunca tinha reparado: uma loja de bengalas, um pet shop colorido, uma praça cheia de velhos com roupas de ginástica. "Sou um samurai numa longa jornada pelos vales sagrados." Chega em casa em pleno pôr do sol, cansado mas com ganas de regar o jardim. Decide plantar assim que possível um pé de limão-rosa, a fruta preferida de seu pai, já morto. Às nove da noite liga pra filha, que mora do outro lado do país, e lhe conta como foi bom seu dia de vagabundo. "Sou um samurai", diz, "no auge das minhas habilidades, decidido a lutar pela glória do homem e de Deus". Ela ri e lhe deseja boa noite. Ele vê um pouco de tevê e em seguida vai até o quintal. Deita na grama -a princípio com receio de sujar o pijama azul-claro, depois se lixando pra isso- e fica olhando o céu. As mesmas estrelas da infância. O arco da vida ainda incompleto. "Sou um samurai no início de uma viagem sem volta, de transformação."

    Revelação
    Coelho é o peixe da relva.

    Temas
    Cansei de escrever sobre cigarros, cansei de escrever sobre azulejos. De agora em diante vou me dedicar às bacias de alumínio e às árvores sem poda. Me deixar levar pelos ritmos dos galhos que se doam sem motivo. Me deixar cegar pelo brilho das bacias que resistem por ninguém.

    Cachorro
    Fui o cachorro deste dia de outono. Eu o acompanhei do início ao fim. Minha alegria era feita de água. Minha melancolia era feita de luz. Não importa que eu volte a ser um homem amargo. Estarei sempre aberto à incrível transparência.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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