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    Fabrício Corsaletti

    Aniversário

    04/06/2017 02h00

    Pedro Piccinini
    Ilustração da coluna de Fabrício Corsaletti de 04.jun.2017

    Ouvi esta história de um casal de amigos. Se alguém duvidar de sua veracidade, que vá tirar satisfações com eles, pois juro que não inventei nada.

    Bárbara, a filha deles, ia fazer três anos. Os pais mandaram convites pra todas as crianças do prédio. A mãe fez salgadinhos e um bolo de chocolate. O pai comprou refrigerantes e sucos. Juntos, eles encheram e penduraram as bexigas. Bárbara, louca de ansiedade, não parava de repetir os nomes dos convidados.

    No dia e hora marcados, não apareceu ninguém. O pai achou estranho e interfonou no apartamento do pai de uma das crianças, um sujeito largado e gente boa com quem tinha alguma intimidade. Soube então que naquela mesma tarde estavam dando uma outra festa no prédio vizinho, um condomínio de luxo no meio do bairro de classe média. Estava todo mundo lá. Que chato. Pois é. Parabéns pra pequena.

    Meus amigos ficaram irritados; Bárbara sacou o clima e começou a chorar. O casal discutiu a respeito do que fazer, se é que havia alguma coisa a ser feita. Por fim tiveram uma ideia.

    Pegaram o bolo, a vela, as línguas de sogra, os chapéus de funil, as bexigas, os salgados, as bebidas, os copos, os pratos e os garfos de plástico, a isso acrescentaram uma garrafa de cachaça, e foram de táxi até o viaduto mais próximo, debaixo do qual vivia uma dúzia de mendigos.

    Eles ouviram tudo com atenção e imediatamente se solidarizaram com a menina: puseram os chapéus na cabeça, assopraram as línguas de sogra, balançaram as bexigas no alto e cantaram três vezes o "Parabéns a Você". Bárbara pulava de alegria no colo da mãe e batia palmas, como se nada de ruim tivesse acontecido, ou como se a consciência da humilhação passada lhe desse forças pra lutar e, por vingança, ser feliz -mas não entendo muito de psicologia infantil.

    Coxinhas e empadinhas desapareceram em segundos. O bolo foi destroçado sem garfos, só com bocas e mãos. A cachaça, no entanto, eles beberam devagar. "Como se tomassem um licor raro e precioso", disse meu amigo.

    Minha amiga, por sua vez, contou das conversas que teve com alguns dos moradores do viaduto, enquanto a filha brincava sem grandes dificuldades com um menino um pouco mais velho do que ela.

    Quando a aniversariante se cansou, o pai botou a filha no ombro, de cavalinho, e voltaram pra casa caminhando -os dois adultos se sentindo leves e revoltados, com as almas lavadas numa água suja.

    Nas semanas seguintes a Bárbara só falava na sua "festa diferente". O carro, o amiguinho, o colchão na calçada. Pela sua fala dava pra perceber que havia mais coisas, ela sabia disso, mas não conseguia exprimir com palavras. Depois de um tempo, deixou de tocar no assunto.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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