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    Fabrício Corsaletti

    Inimigos

    18/06/2017 02h00

    Paisagem

    Um rio sujo. Sacos de lixo e copos de plástico na correnteza. Na margem direita o mercado de peixes. Na margem esquerda um posto de gasolina abandonado e uma casa de madeira, pintada de vermelho há muito tempo, prestes a desmoronar. Lá embaixo um barco de pesca sem ninguém dentro. O ar é úmido e pegajoso. O cheiro não é dos melhores. Um desses lugares desolados do Brasil, que fazem você se sentir podre por dentro. Quando uma garça pousa no corrimão da ponte –seu branco é vibrante, quase fosforescente–, a paisagem inteira parece querer se transformar. Mas essa ilusão dura menos que um susto. Penso na força que perdemos, que perdi.

    Inimigo

    Perdi tempo demais com meu inimigo. Agora eu sei que ele não estava nem aí. Significa que passei esses anos todos lutando contra um fantasma, ou contra mim mesmo, o que é ainda pior. As coisas podiam ter sido diferentes. Já não estava na hora de ter alguma paz?
    – Dar ovos nas mãos dos macaquinhos no telhado.
    (O rabo do olho no inimigo real.)

    Moçambicana

    Todo 25 de setembro celebra o início da guerra "contra o colonialismo, não contra os portugueses, pois os portugueses são pessoas como nós", diz.
    Falar em lucidez seria diminuí-lo.
    O nome disso é bondade.

    Tanque

    Lavava roupa no tanque de manhã cedo às seis da tarde na casa da minha avó, da minha mãe e da minha tia. Devia ter braços muito fortes, embora o corpo fosse magro e o rosto enrugado como um escroto no frio. Era branca. (Não era negra.) Parecia nórdica. Falava baixo e quase não sorria. Se a gente chutasse uma bola nela, dizia "demônio" e voltava a torcer meus shorts de nylon. Quando terminava de colorir o último varal, ia embora a pé. Não morava longe. Trabalhou pra nossa família até morrer. Depois de morta não trabalhou mais.

    Fim da guerra

    na noite anterior
    para comemorar o fim da guerra
    eles planejaram uma viagem a Istambul

    agora o filho enterra o pai
    a mãe e o irmão mais novo
    no quintal

    eu o imagino tomando café
    aberta a porta dos fundos
    um gato ameaça entrar

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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