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    Fabrício Corsaletti

    Sicílias

    17/09/2017 02h00

    Pedro Piccinni

    Às vezes, quando estou cansado ou deprimido, depois de um dia de trabalho ruim ou depois de ler os jornais atrasados, entro no Google Earth e viajo sem mala e sem dinheiro pelo mundo.

    Me arrasto por vielas de Tóquio cheias de bares minúsculos com letreiros ilegíveis; plano pela ilha verde e despovoada onde o escritor norueguês Karl Ove passou a infância (e que é o pano de fundo do terceiro volume da sua série autobiográfica); paro no centro de uma praça de Paris onde há jovens e velhos jogando petanque, a bocha francesa, com bolas reluzentes de metal; confiro as samambaias que pendem das sacadas de ferro rendilhado em New Orleans; visito meu bairro preferido em Buenos Aires; revejo (imagino, porque a imagem não é tão boa) a luz amarela da Bahia; desço até o litoral de São Paulo e prometo a mim mesmo que até o fim do mês vou pra lá de verdade, de ônibus, pra não esquecer que sempre há uma saída, nem que seja pro mar; atravesso os campos da Mongólia, com seus cavalinhos peludos e desengonçados; desço em Moscou (claro!, por que nunca pensei em ir pra Moscou?); fico um bom tempo observando uma ponte vermelha na Irlanda que uma mulher de rosto borrado e meias-calças pretas atravessa com o neon de um pub ao fundo.

    Depois a Itália –abro um vinho, Veneza, faço anotações repetitivas e sem qualquer censura: "pele de afresco", "olhos de afresco florentino", "olhos de afresco" etc. Mas na Sicília me dou conta de que estou bêbado e com sono. Levo a garrafa vazia pra cozinha, desligo tudo e vou dormir.

    E já que falei em Sicília, e como não tenho mais nada a dizer sobre essas viagens virtuais, transcrevo abaixo um trecho do romance siciliano "O Leopardo", de Lampedusa, na tradução de Maurício Santana Dias, que li nas férias com grande prazer. Nele, o protagonista de meia idade, ainda viril mas insatisfeito com o rumo que sua vida erótica está tomando, contempla uma fonte sensual em seu palácio de verão. (A fim de evitar constrangimentos, aconselho o leitor a mudar sua chave de leitura do "estilo vira-lata" pro "estilo chique", que a prosa de Lampedusa é chique mesmo.)

    "Sopradas pelos búzios dos Tritões, pelas conchas das Náiades, pelas narinas dos monstros marinhos, as águas irrompiam em filamentos sutis, martelavam com pungente rumor a superfície esverdeada da bacia, produziam saltos, bolhas, espumas, ondulações, frêmitos, remoinhos risonhos; de toda fonte, das águas tépidas, das pedras revestidas de musgos aveludados emanava a promessa de um prazer que jamais poderia se transformar em dor. Sobre uma ilhota no centro da bacia redonda, modelado por um cinzel inábil mas sensual, um Netuno rude e sorridente agarrava uma Anfitrite libidinosa; o umbigo dela brilhava ao sol encharcado pelos jatos, ninho, em breve, de beijos secretos na penumbra subaquática. Dom Fabrizio parou, olhou, recordou, lamentou. Permaneceu ali por um bom tempo."

    A coluna "Prosa/Poesia" é publicada aos domingos a cada 15 dias na "revista sãopaulo"

    Bruno Santos/Folhapress
    chamada mobile da edição de 09.jul.2017 da revista sãopaulo
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    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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