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    Fabrício Corsaletti

    Confissão

    17/12/2017 02h00

    Pedro Piccinini

    Dias antes de entrar na sala de operação, meu avô pediu pra chamarem um padre, pois queria se confessar. Anos depois minha avó me contou, com embaraço, que a confissão se resumiu a isso:

    — Padre, eu fiz de tudo. Só não matei.

    Sei que nesse "fiz de tudo" cabem as maiores maldades, mas meu avô devia saber o que estava dizendo. Não o imagino inflacionando seus pecados, se martirizando na hora fatal (aos que lhe desejavam boa sorte, dizia, sem drama, que não sobreviveria a essa segunda operação). Passou boa parte da vida longe dos santos da igreja e mantinha uma distância segura dos santos da sociedade. Era violento e lírico, e dava a impressão de carregar um bom fardo de culpa pra onde quer que fosse.

    Quando fiquei próximo dele, isto é, quando cansou de rodar o interior do Mato Grosso e do Pará e parou de me enviar cocares, arcos e flechas de presente, ele já era velho pros meus padrões da época –um velho loiro e forte–, e eu tinha nove, dez anos no máximo. A gente sentava um de frente pro outro em cadeiras de ferro na varanda da casa dele, meu avô acendia um cigarro, depois outro, e me contava histórias da sua infância e adolescência –tocando boiada, correndo a cavalo e apanhando de chicote. Era cego de um olho por ter caído de um burro chucro ou por ter pulado de cabeça na piscina vazia de um hotel, ninguém sabia. Eu achava as duas versões igualmente terríveis e nunca pensei em lhe pedir explicações.

    Pelo menos uma vez por semana, durante três ou quatro anos, íamos juntos pra fazenda que ele administrava. Ele passava em casa às cinco horas com um jipe vermelho; eu o esperava na porta; minha mãe perguntava se ele queria entrar pra tomar café, ele agradecia; eu sentava no banco do carona, ele dizia "pronto, peão?" e acelerava. O caminho era de terra; o sol nascia atrás das árvores; as vacas comiam capim fresco; os urubus planavam lá no alto –e não há amanhecer que não me traga de volta um pouco daquelas viagens alegres, sem nostalgia nem arrependimento, cheias de medo e o dobro de coragem.

    Minha admiração por ele era tão grande que eu tinha vergonha de viver na cidade, de ser bom aluno, de querer estudar medicina. Me afastar dele pra sair com os amigos no sábado à noite pra beber cerveja e arrumar namorada foi um troço difícil, parecia traição. Estranhamente, quando comecei a ler poesia voltei a me sentir conectado com esse avô antiliterário, que acima de tudo era um homem gentil, pelo menos comigo e com a minha mãe, sua nora.

    Foi só depois da sua morte que consegui escrever do meu jeito. Não quero fazer psicanálise de boteco, mas lembro que acreditava, e de certa forma ainda acredito, que essa perda estava por trás dos primeiros poemas que tive vontade de publicar.

    Um lugar-comum ligado à escrita faz pensar que se escreve pra resgatar o que se perdeu, como quem procura joias no leito de um rio ou retira corpos do fundo do mar. É verdade. Mas o contrário não é mentira: também se escreve pra enterrar os que amamos e seguir em frente –mesmo sabendo que eles não estarão lá.

    fabrício corsaletti

    Nascido em Santo Anastácio (SP), em 1978, é autor de 'Esquimó' (Cia. das Letras, 2010) e 'Golpe de Ar' (Ed. 34, 2009). Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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