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    Fernanda Torres

    Buquê

    29/11/2013 03h00

    T. é amigo de meus enteados, tem 23 anos e faz o estilo Jesus Cristo Superstar. É bonito, selvagem, boa-praça e popular entre as mulheres. O mais experiente entre os seus, já levou à lona uma coroa de 32.

    T. arrumou uma namorada fixa, também bela, interessante, inteligente. M. é uma garota sagaz que acaba de terminar uma relação de um ano com um homem mais velho. M. trata T. como um ogro adorável, quer criá-lo para si, talvez como o outro fez com ela.

    Era um fim de festa em minha casa, sobraram os adolescentes já não tão adolescentes e eu, para lá de balzaca. T., como quem revela uma angústia a um amigo, me confessou num aparte:

    - Minha namorada me proíbe de tomar Coca-Cola e comer chocolate.

    Por solidariedade ao gênero, e fiel às tendências orgânicas, dei razão à moça, argumentando em prol de uma dieta saudável; T. me interrompeu brusco.

    - Você não entendeu, ela grita comigo --disse.

    A mesa ouviu e refletiu calada.
    - Vocês acham certo isso? Ela gritar por causa de uma Coca-Cola? --perguntou, impotente.

    Jesus Cristo não sabia, mas começava para ele um noviciado. T. estava sendo introduzido no ardiloso mundo da histeria feminina. Parecia assustado e tinha motivos para tanto.

    As mulheres têm o dom de surtar. A fragilidade atávica lhes permite perder a cabeça, chorar além do suportável, entrar no túnel, sofrer até sair da pele. Aos homens, resta o recuo, a obrigação do amparo. A posição de vítima é, por conquista, da mulher.

    Apesar do aspecto irracional, todo descabelamento feminino é fundamentado em uma razão concreta, um direito não atendido. É o que as salva da loucura.

    - Ela grita? --perguntei.

    - Grita --ele disse.

    - Por uma Coca-Cola?

    T. confirmou dúbio, baixou os olhos e, depois de uma demorada pausa, fez a revelação.

    - Ela se irrita porque... porque ela diz que muda o gosto...

    Ia falar da porra, mas teve pudor por minha causa.

    - Do gozo --concluiu formal.

    A mesa reagiu estupefata. Ninguém havia relacionado o cardápio ao sexo, tratava-se de uma surpreendente guinada.

    - Isso existe? --perguntou ele, surpreso.

    M. tinha razões para vociferar. Anos de feminismo desaguaram nela, no direito de temperar os fluidos do companheiro.

    Discretamente, a plateia passou em revista os alimentos que poderiam justificar a indignação de M.: fast food, acarajé, cebola, mostarda, agrião, cítricos. Que influência teriam no sêmen? Que mistura acentuaria o buquê de aromas terrosos, o retrogosto de calcário harmonizado, a estrutura firme, a adstringência clássica e os taninos de consistência ácida?

    Perdida no devaneio e querendo honrar o posto de anciã, lembrei-me de um amigo de Nova York, gay militante, que repetia categórico: "Forget aspargus!". Richard conhecia os dois lados da balança e não tenderia nem para M. e nem para T..

    - Meus queridos, --eu disse-- esqueçam o aspargo!

    Os moleques respiraram aliviados, não gostavam de aspargo. Não seria nenhum sacrifício abrir mão dele, não se tratava de um polenguinho, um cheese tudo, ou um balde de refrigerante. R., o menor, que só recentemente concluíra a puberdade tardia, sorriu satisfeito.

    - Ainda bem que eu me alimento direito --disse, com uma placidez invejável.

    Tive uma pena colossal, um carinho imenso pela inocência dele.

    Já T. não parecia tão seguro. Percebia a gravidade da situação.

    M., afinal, tinha direitos sobre as secreções dele. Bastava olhar o súbito interesse culinário dos presentes. Tal prerrogativa dava à garota a liberdade de soltar os cachorros sobre ele quando bem entendesse, de ser dona de tudo, de se apossar geral, de moldá-lo ao seu bel-prazer.

    Entre o chocolate e a carícia íntima, quem há de negar que a segunda supera a primeira no que concerne o interesse do casal. M. zelava pelos dois, era a boa, a pura, a santa. O egoísta era ele.

    T. acabou a noite com um sorriso inconformado no rosto. Pelo bem da união, via-se, agora, como parte de uma engrenagem sexo-digestiva. A fábrica de excrementos do Mimi, o Metalúrgico. O rapaz refletia se sobreviveria em tais condições.

    O mais provável é que T. desenvolva a surdez seletiva às lamúrias dela, na esperança de que M. canse ou se conforme com o seu sabor adocicado.

    fernanda torres

    É atriz e colunista da
    Folha desde 2010.
    Escreve às sextas,
    uma vez por mês.

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