• Colunistas

    Sunday, 05-May-2024 17:16:07 -03
    Fernando Schuler

    Cobrar mensalidade não é a melhor solução para universidades públicas

    30/11/2017 08h06

    Divulgação
    Educação - ALUNOS DE MEDICINA DA USP EM GREVE DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
    Alunos de medicina da USP fazem greve

    Michael Bloomberg se formou em engenharia elétrica em 1964, na Johns Hopkins University. Fez fortuna no mundo financeiro e foi prefeito de Nova York durante 12 anos. No final do ano passado, ele voltou ao campus, em Baltimore, e anunciou uma doação de US$ 300 milhões para a escola de saúde pública, que levará seu nome. Não foi a primeira vez que ele doou para a universidade. Suas contribuições já passam de US$ 1,5 bilhão. Ninguém insinuou que Bloomberg faça isto movido por algum tipo de "interesse". Suas doações são celebradas, e todos ganham com isso. Há um sistema formado por centenas de universidades filantrópicas. E há muitos como Bloomberg, que buscam um lugar para apostar no futuro. Essa tem sido a história do sistema universitário americano.

    O Brasil optou por uma outra história: escolhemos acreditar em universidades estatais, dependentes dos governos e dos impostos pagos pelo contribuinte. A USP, nossa universidade tradicionalmente melhor colocada, internacionalmente, gasta apenas em salários mais do que recebe, via impostos, do governo paulista. O ex-reitor Jacques Marcovitch organizou um livro, recentemente, dando conta da sequência de erros de gestão que levaram à crise estrutural da universidade. Não vale aqui ir ao detalhe nisso. Mais triste seria falar da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com os salários atrasados e greves sem fim. A culpa disso tudo, por óbvio, não é dos professores, tão pouco dos reitores. É o modelo. Fizemos uma escolha, como país. E estão aí as consequências.

    Estas coisas me vêm à mente enquanto leio o relatório recente do Banco Mundial sobre a qualidade do gasto público, no Brasil. O relatório sugere algumas saídas para nossa educação superior. Ampliar o FIES e apostar no ProUni, por exemplo. A ideia que gerou mais impacto, porém, foi a sugestão de cobrar tarifas ou mensalidades nas universidades públicas. O raciocínio é simples: o ensino superior oferece ótimo retorno aos estudantes, e o acesso a ele "privilegia fortemente estudantes de famílias mais ricas". Nada mais justo que os que têm mais, paguem pelo estudo que recebem.

    A proposta causou certo barulho. Setores "pró-mercado" aparentemente simpatizaram com a ideia. Seria, afinal de contas, uma reforma. Coisa rara no Brasil. Nossa velha e conhecida corporação pública, como previsível, deu contra, com os argumentos de sempre: o ensino deve ser "público e gratuito", é preciso combater a lógica privatizante, a universidade presta relevantes serviços, é um "direito". Coisas assim.

    O que chama a atenção, nesse debate, é o fato de que ninguém questione o "modelo". Os técnicos do Banco Mundial parecem imaginar que a cobrança de mensalidades produzirá alguma melhora da gestão das autarquias federais de educação. Que serão reduzidos o mando corporativo, a burocracia, a lentidão na tomada de decisões, a aversão à meritocracia, a rigidez orçamentária e o impacto negativo da interferência política em decisões que deveriam ser estritamente acadêmicas e administrativas. Teríamos, ao cabo, uma situação curiosa: alunos pagando como "clientes" e recebendo, como retorno, os serviços habituais de uma repartição pública.

    Não digo que a ideia seja de todo absurda. Não é. É apenas comum. Sugere não mexer na estrutura de gestão das universidades e extrair mais um naco de renda de nossa classe média. A mesma que já paga saúde pública e contrata saúde privada; que paga a escola pública e contrata a escola privada e cada vez mais faz o mesmo com previdência e mesmo segurança. Mas esse não é o problema. E as demais estratégias de busca de recursos? Os programas de alumni? As doações e múltiplas parcerias com o setor privado? Será que a única ideia que conseguimos ter, para o Brasil, é sugerir a cobrança de mais uma taxa?

    Sempre me causou perplexidade essa propensão brasileira a não questionar, sob nenhuma hipótese, o modelo estatal de gestão da educação. Na área da saúde há avanços significativos, em muitos estados, como na Bahia, com o Hospital do Subúrbio, e na rede de organizações sociais de saúde de São Paulo. Mas na educação empacamos. Isso se deve, em parte, ao furioso lobby da educação estatal vigente no país. Mas também tem a ver com o pouco caso que, no fundo, fazemos em relação à educação. E com a nossa inércia ancestral, tão bem traduzida na sentença de Faoro: "É assim porque sempre foi".

    Um país se faz de escolhas. O mundo anglo-saxônico escolheu erguer, ao longo de sua história, uma rede de universidades independentes, organizadas como instituições filantrópicas, com fundos de "endowment" (o maior é o de Harvard, com ativos de US$ 37 bilhões), gestão profissional e programas agressivos de doações, cátedras, alumni e filantropia. Nossa opção foi pela burocracia pública, essa é a verdade. Cada um pode fazer a gritaria que quiser, e todos podemos fazer de conta que tudo isso é muito natural, que sempre foi assim, que talvez nem tivemos opção. Mas não é verdade, sabemos disso.

    fernando schüler

    É cientista político, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento, que organiza conferências internacionais. Escreve às quartas-feiras, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024