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    Ferreira Gullar

    Pintar, sonhar com as mãos

    04/05/2014 02h00

    Do Renascimento, isto é, do século 15, ao século 20, a pintura inventou e explorou um novo caminho: o espaço fictício tridimensional. Ao longo de cinco séculos, os pintores criaram, em suas telas, um universo outro, que só existia nelas.

    De cenas religiosas a situações da vida cotidiana, de cerimônias nas cortes e de momentos dramáticos, todo um mundo de sentimentos, de aspiração à transcendência, do erotismo e da poesia cotidiana, a arte pictórica contribuiu para inventar e enriquecer a existência das pessoas, através de diferentes épocas.

    Mas com o cubismo, no começo do século 20, os pintores desmontaram o espaço virtual e encantatório, dando início a um novo momento na história da arte. Já falei disso aqui, mas, se volto a mencioná-lo, é porque esse é um caminho para entendermos certas manifestações artísticas de hoje, como é o caso da pintura de Maria Tomaselli, cujas obras estão expostas no Centro Cultural dos Correios, aqui no Rio de Janeiro.

    Não pretendo dizer, obviamente, que a pintura de Maria Tomaselli seja cubista ou uma derivação do cubismo. Nada disso, a relação que estabeleço se refere, de fato, à revolução que os cubistas deflagram na pintura, sobretudo rompendo a relação entre esta e a natureza: essa revolução resultou, efetivamente, na maior autonomia da linguagem pictórica. Tal autonomia se expressa, essencialmente, no uso do espaço da tela como "o lugar da pintura", o espaço onde tudo pode virar expressão artística.

    Vou tentar ser mais claro: depois que o pintor deixou de imitar a natureza para criar a partir da tela vazia e dos elementos gráfico-pictóricos, entendeu que fazer o quadro é que importava e, para isso, tanto podia valer-se de cores e linhas, de uma figura inventada, quanto de outros elementos como papel colado, barbante, areia ou o que fosse. Realizar o quadro (a obra) não se limita a pintá-lo, mas fazê-lo. É nisso que Maria Tomaselli se aproxima dos cubistas: ela também "faz" o seu quadro; não apenas o pinta.

    Mas, vejam bem, não estou sugerindo que ela partiu do cubismo para chegar aonde chegou. Não sei como isso se deu, mas não seria preciso a relação direta com a pintura de Picasso ou Braque, uma vez que aquela nova relação do pintor com a tela influiu decisivamente no rumo que a pintura tomou no século 20. A colagem, por exemplo, tornou-se uma linguagem autônoma, como no caso de Kurt Schwitters, que terminou saindo da tela para construir suas obras no espaço real.

    Num primeiro momento, o cubismo levou, em certos casos, à desintegração da pintura. Maria Tomaselli surge várias décadas depois daquela implosão e, por isso mesmo, sua relação com aquele fenômeno é outra. E não só por isso mas, sobretudo, por suas qualidades de artista, por seu modo original de reinventar a pintura.

    Logo após a implosão cubista, quando experiências de todo o tipo foram feitas, nas quais a exacerbação radical se sobrepunha às normas então vigentes. Nas manifestações dadaístas mais audaciosas, a pintura parecia acabar. Mas não acabou; de fato, renovou-se, assimilando novos procedimentos. Pois bem, a pintura de Maria Tomaselli é exemplo disso, e tanto mais significativo porque reutiliza e amplia algumas das inovações daquela época.

    No meu entender, este é um fato significativo na fase atual da pintura, porque, ao mesmo tempo que reafirma as qualidades essenciais da linguagem pictórica, a enriquece com a inclusão de recortes de lona, costurados na tela ou com a introdução de gravuras impressas na lona e também acrescentadas à composição.

    Esse procedimento é uma herança cubista mas, agora, usada não como rebeldia e, sim, como recriação poética do espaço pictórico, onde a cor volta a ser a voz essencial da pintura. Aliás, neste particular, devo afirmar que a cor —o espaço cromático— é o elemento básico de suas telas. Ou seja, neste particular, ela se coloca no polo oposto ao cubismo, que submeteu a cor à forma.

    Na pintura de Tomaselli, é a cor que reina e dá sentido novo ao espaço subvertido pelas intervenções inesperadas dos elementos colados, que soam como vozes e sussurros.

    ferreira gullar

    Escreveu até dezembro de 2016

    Cronista, crítico de arte e poeta.

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