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    Ferreira Gullar

    Do fundo da noite

    15/03/2015 02h00

    Há cem anos nascia, em Restinga Seca, Rio Grande do Sul, o pintor Iberê Camargo, que haveria de se tornar um dos nomes mais marcantes da moderna pintura brasileira.

    Costumo dizer que a vida é, em boa parte, resultado do acaso, mas sou obrigado a admitir que certas casualidades são tão especiais que parecem fruto de alguma determinação.

    Vejam isso. Estava, aos meus 18 anos, em São Luís do Maranhão, onde nasci, quando descubro, na Biblioteca Pública, um exemplar recente da revista "Esso", em cuja capa estava estampado um quadro moderno, uma paisagem urbana.

    Foi no final da década de 1940. Naquele fim de mundo onde vivia, quase nada chegava de pintura moderna. Foi aquele quadro –uma paisagem do bairro da Glória, no Rio de Janeiro–, de autoria de Iberê Camargo, de quem nunca ouvira falar. Mas aquele foi o primeiro quadro moderno que me tocou e me revelou essa nova linguagem da pintura. Pois bem, jamais imaginaria, então, que aquele pintor iria, no futuro distante, tornar-se meu amigo e de cuja vida, em seu final dramático, ia eu ter participação.

    A trajetória artística de Iberê foi das mais significativas da arte brasileira, pois, partindo da pintura figurativa, inicialmente na linha do modernismo brasileiro, tornar-se-ia o protagonista de um momento único da arte do país. É quando rompe com a linguagem figurativa, numa implosão estilística que o leva à invenção de um novo expressionismo, que nada deve, porém, a qualquer tendência contemporânea.

    Não pretendo dizer que a sua pintura nada tem a ver com as demais tendências da pintura moderna –o que seria inviável. É verdade, porém, que, à medida em que começa a violar a expressão realista, inicia o caminho que o levará a um modo intensamente expressivo e original de elaborar a linguagem pictórica.

    Em certo momento, explora a riqueza da pasta pictórica, numa entrega passional –diria cega– para alcançar a imagem imprevisível, que surge na tela como algo mágico. Digo isso porque vivi, como modelo, essa experiência indescritível, ao ver minha figura surgir e desaparecer na tela, cada vez que a espátula fazia e desfazia e refazia minha figura diante de meu olhar perplexo.

    Estando eu ali como o objeto a ser retratado, testemunhei o processo exasperado do pintor, que partiu de alguns traços quaisquer, donde surgiria meu rosto por ele inventado, nos lances do acaso e da intuição. Em determinado momento, tive o ímpeto de dizer a ele: "Para, Iberê!". Mas não o fiz, claro, e ele prosseguiu naquela faina feita de ímpeto e mestria, até que, finalmente, surgiu na tela uma imagem de meu rosto, que sou eu mais do que eu, uma metáfora de mim, que só existe ali, naquela tela, naquele acúmulo de camadas de pasta e de cores, mudada em expressão humana, vinda do fundo da noite.

    Nossa amizade nasceu de um artigo que escrevi sobre a exposição que ele fizera na Galeria Acervo e que tinha sido ignorada pela crítica. A mostra não foi montada na sala de exposições da galeria, mas num espaço do subsolo, no porão. Iberê a fizera na esperança de conseguir dinheiro para pagar o advogado que o defendia da acusação de homicídio.

    Escrevi o artigo porque os quadros expostos eram de alta qualidade artística, mas, também, para responder à crueldade dos que desconheciam o seu drama e, sobretudo, seu talento de pintor. Além disso, as referências que surgiam sobre ele, na imprensa, "o homicida Iberê Camargo".

    Após ler o artigo publicado na revista "IstoÉ", ele me telefonou soluçando para me agradecer e, dias depois, me convidou para ir jantar em sua casa. Nasceu aí uma amizade que durou até os últimos dias de sua vida. Tenho comigo, como uma preciosidade artística, mas também como uma joia afetiva, o retrato meu que ele pintou naquela ocasião.

    Pouco tempo depois, ele se mudou do Rio para Porto Alegre, onde pintou até quando a doença lhe permitiu. Antes de morrer, ele me telefonou. Um telefonema de despedida.

    ferreira gullar

    Escreveu até dezembro de 2016

    Cronista, crítico de arte e poeta.

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