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    Ferreira Gullar

    Um cara de sorte

    05/04/2015 02h00

    Inesperadamente, me pego a perguntar: se não tivesse conhecido Mário Pedrosa (1900-81) quando cheguei ao Rio, com 21 anos de idade, que rumo teria tomado a minha vida?

    Teria sido outro, respondo sem hesitar e, ao mesmo tempo, assustado com a constatação. Mas que outro rumo teria tomado?

    Impossível saber, uma vez que não aconteceu e isso me leva a crer que só poderia ter seguido o rumo que segui, tão decisivo foi tê-lo conhecido e me tornado seu amigo, integrando o grupo de jovens artistas que se formou em torno dele.

    Foi por tê-lo conhecido que tomei conhecimento da tendência concretista, de que ele se tornara adepto de propagador. Por esse razão, em torno dele se formou um grupo de pintores e escultores, que aderiram à nova tendência. Eu, que não era artista plástico e imprimira à minha poesia um rumo contrário à objetividade do concretismo, também me tornei um adepto do movimento.

    Em função de todos esses fatores, tornei-me amigo dos jovens artistas que seguiam as ideias de Pedrosa, com os quais passei a conviver e a discutir as novas ideias estéticas.

    Na biblioteca de Mário, encontrei livros que me ajudaram a me formar intelectualmente; livros de filosofia, de estética e história da arte.

    Com ele, aprendi a ver de maneira mais ampla a questão da arte, valorizando as inovações da vanguarda, mas também a expressão virgem da arte das crianças, dos primitivos e dos loucos.

    Teria eu me envolvido com tais experiências, se não o tivesse conhecido? Possivelmente, não.

    Nem mesmo consigo imaginar-me, recém-chegado ao Rio de Janeiro, convivendo com outras pessoas.

    E me pergunto: teria eu lido os filósofos pré-socráticos, se não tivesse ele me emprestado o livro que reunia o pensamento desses filósofos?

    Certamente, não. E, se não os tivesse lido, não teria seguido o rumo que segui e que imprimi às minhas indagações de crítico de arte e de poeta. É que vamos nos fazendo pelo que lemos e pensamos.

    Foi porque me integrei naquele grupo de artistas que ajudei a inventar a poesia concreta e inventei o nome de arte neoconcreta para designar os trabalhos que realizamos depois.

    Não pretendo dizer que o fato de ter conhecido Mário Pedrosa e participado daquelas experiências e discussões do grupo tenha sido o único fator determinante do caminho que segui na vida cultural.

    As coisas não são tão simples assim, pela razão mesma de que as características de cada indivíduo —enfim, sua individualidade— são também determinantes de seu pensamento e de suas realizações.

    Basta dizer que cada um dos membros do grupo neoconcreto imprimiu a suas obras qualidades que o distinguem dos demais.

    Isso é verdade para eles como o é para mim, que, a certa altura, afastei-me deles e do tipo de arte que fazíamos, para engajar-me na luta política e por a serviço dela o meu trabalho intelectual.

    É que, àquela altura, a aventura neoconcreta me pareceu esgotada.

    Essa opção veio determinar minha aproximação com outro tipo de intelectuais, voltados inteiramente para as questões sociais e políticas, e uma mudança radical nas minhas preocupações e atividades culturais.

    Tratou-se, sem dúvida, de uma ruptura com o universo estético sofisticado em que atuei e com a concepção de vida que ele implicava.

    Basta dizer que, em vez de livros-poema e poemas-objeto, passei a escrever poemas de cordel, a mais rudimentar forma de poesia.

    Não obstante, o militante político que então me tornei levava consigo toda a experiência de arte e de vida que o convívio com Mário Pedrosa e os artistas do grupo me possibilitara e que iria determinar, por sua vez, mudanças posteriores que me fizeram ser quem sou hoje.

    Mas não sou eu, nem o que ocorreu comigo, o que importa aqui. Quando formulei a pergunta do início desta crônica, estava na verdade constatando o quanto fatores casuais são determinantes na nossa existência.

    Nesse caso, tive a sorte de me tornar discípulo de um homem que era exemplo de lucidez e sonho, de erudição e irreverência. Por tudo isso, só posso dizer que dei na sorte na vida.

    ferreira gullar

    Escreveu até dezembro de 2016

    Cronista, crítico de arte e poeta.

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