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    Ferreira Gullar

    Arte como alquimia

    19/04/2015 02h00

    Outro dia, me deparei com uma senhora que veio a meu encontro para dizer-me: "Fiquei muito feliz ao ouvi-lo dizer que a arte transforma o sofrimento em alegria". Falou isso e me abraçou.

    E aí quem ficou feliz fui eu, de ver que aquela minha opinião tinha alcançado seu objetivo. É que já estou cansado de ver e ouvir coisas que visam exatamente o contrário, ou seja, fazer da arte veículo da feiura e da banalidade.

    Essa não é uma opinião unânime, uma vez que os museus e as mostras internacionais de arte, em muitos casos, expõem coisas –ditas obras de arte– que ninguém poria em sua sala, nem mesmo os que as exibem.

    É verdade que isso não surgiu gratuitamente, mesmo porque a verdadeira arte não é apenas bom gosto e boniteza. Quando digo que o artista transforma sofrimento em alegria, estou me referindo à complexa alquimia que está na essência de toda arte verdadeira.

    Transformar sofrimento em alegria só consegue quem efetivamente conhece o sofrimento e o sente na carne. É como Picasso quando pinta a "Guernica", tocado pela tragédia daquela pequena cidade esmagada pela fúria nazista.

    Esse é um caso extremo, mas, por isso mesmo, serve de exemplo do que pode realizar a alquimia da dor em alegria estética, se bem entendido, uma vez que a crueldade presente naquele episódio bestial não se apaga como fato real.

    Pelo contrário, a sua transformação em linguagem simbólica, ao mesmo tempo que o transfigura, o perpetua como expressão de bestialidade e sofrimento. E daí mesmo a significação especial que aquela obra guarda em si.

    Não pretendo afirmar que toda arte nasce do sofrimento ou da tragédia, porque, se o fizesse, estaria desconhecendo, por exemplo, a beleza das telas de Henri Matisse ou das naturezas mortas de Giorgio Morandi.

    Essas obras não nasceram do sofrimento e, sim, da alegria de criar a beleza –do espanto, como costumo dizer– que é em suma a necessidade de acrescentar ao mundo, que já tem tanta beleza, mais uma coisa bela. Isso porque a vida, com tudo o que nos oferece, não basta.

    Não só necessitamos mudar o sofrimento em alegria, como também criar mais e mais alegrias. Por isso, escrevi, certa vez, a propósito da tela "A Noite Estrelada", de Van Gogh, que aos milhões de noites expandidas universo afora (ou a dentro?), ele acrescentou mais uma, que só existe em sua tela.

    Não encontraremos nela tantas estrelas quanto encontramos no céu mas, em compensação, pôde o artista impregnar aqueles poucos centímetros de pano com uma magia que os torna mais rico que os espaços infinitos da noite cósmica.

    É que a noite do pintor é invenção humana, coisa nossa.

    Sim, porque a noite pintada, a obra de arte, não é a realidade –que, por si só, já guarda um mistério insondável. A noite estrelada de Van Gogh não é a que se vê da janela do apartamento; é outra noite, inventada por sua maestria.

    Por isso, quando digo que pintar é transformar o sofrimento em alegria, refiro-me à alegria que nasce da linguagem pictórica, do mesmo modo que a alegria dos poemas de Carlos Drummond de Andrade, que surge do espanto diante da vida e da magia das palavras.

    Essa é a razão minha de acreditar que o mundo humano é inventado, mas não no sentido de que seja mera fantasia. Nada disso.

    Existe o mundo material, que independe de nós –o chão, o mar, as montanhas– cuja origem desconhecemos, e existe o mundo humano, da tecnologia, da religião, da arte– o qual inventamos para tornar a vida melhor.

    Sei muito bem que, se a realidade não é simples, tampouco o é o mundo imaginário da arte.

    Quando Picasso pintou "Guernica", foi movido pela revolta que nele provocou o bombardeio daquela pequena cidade por aviões alemães mas, ao pintá-lo, não pretendeu obviamente repetir o sofrimento que o massacre provocara e, sim, pela dramaticidade das figuras que inventou, denunciar a barbárie dos genocidas e exaltar a grandeza da vida humana.

    Por isso, cabe afirmar que, quando a obra de arte não consegue transcender a barbárie ou a dor, não cumpre sua função.

    ferreira gullar

    Escreveu até dezembro de 2016

    Cronista, crítico de arte e poeta.

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