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    Ferreira Gullar

    É hora de recuperarmos a utopia da sociedade fraterna e menos desigual

    21/08/2016 02h00

    Rubem Grillo/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração Ferreira Gullar de 21.ago.2016

    Admitir que o pensamento marxista continha acertos e erros não significa ter aderido ao capitalismo e se tornado de direita. Adotar semelhante atitude é persistir no que havia de pior no marxismo, ou seja, na incapacidade de exercer a autocrítica.

    Depois de quase um século da revolução comunista de 1917, da qual resultou o Estado soviético, a humanidade avançou econômica e tecnicamente, ao mesmo tempo que sofreu guerras sangrentas e massacres, como os campos de concentração nazistas e os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki.

    Depois de tantos erros, é hora de refletirmos sobre o que aconteceu e recuperarmos a utopia da sociedade fraterna e menos desigual.

    O sonho de Karl Marx era criar uma sociedade sem exploração, regida por normas que visavam impedir a divisão desigual da riqueza produzida. A concepção dele sobre essa nova sociedade apoiava-se, no entanto, num entendimento equivocado de como se cria a riqueza social.

    Esse entendimento partia de uma constatação inequívoca do grau de exploração a que o capitalismo do século 19 submetia o trabalhador, que não gozava dos mínimos direitos, como a jornada de trabalho estabelecida e a aposentadoria, entre muitos outros. Esse capitalismo selvagem levou Marx a concluir que só havia um modo de criar uma sociedade justa: excluindo dela o capitalista.

    Assim, constituiria-se um Estado proletário, dirigido pelo partido comunista, justo porque dele estava excluído o capitalista explorador.

    Essa teoria pressupunha que é a classe operária quem produz a riqueza, enquanto o capitalista nada mais faz que explorar o trabalho alheio e enriquecer. O equívoco de Marx estava em ignorar que, sem o capitalista, ou seja, sem o empreendedor, a produção da riqueza é quase inviável. É que ela depende tanto do trabalhador quanto do empreendedor, o empresário.

    Por estar exclusivamente nas mãos do Estado, isto é, do partido comunista, a tarefa de produzir a riqueza foi o erro que levou ao fracasso do regime comunista. Na verdade, em qualquer sociedade, há milhões de pessoas que sonham criar sua própria empresa. Substituí-las por meia dúzia de burocratas do partido é condenar o país ao fracasso econômico.

    Não é à toa que, hoje, da Rússia à China, como nos demais países outrora comunistas, todos abandonaram a concepção marxista e voltaram a estimular a expansão da iniciativa privada. Ou seja, voltaram ao regime capitalista. Isso não significa, porém, que o capitalismo de repente tornou-se bom e justo e que devemos nos contentar com a desigualdade que o caracteriza. Essa desigualdade é inerente ao próprio sistema, regido pelo princípio do lucro máximo.

    Pois bem, esse longo caminho, que a humanidade percorreu no último século, mostrou que o Estado comunista nivela a igualdade por baixo, enquanto no regime capitalista, mesmo com as conquistas alcançadas pela classe operária e os trabalhadores em geral, a exploração se agrava e a desigualdade se amplia, de que é exemplo o capitalismo norte-americano.

    Isso, porém, não é inevitável. Em países capitalistas como a Suécia, a Noruega e mesmo a Suíça —para ficar apenas nesses exemplos— a desigualdade foi consideravelmente reduzida. Não há porque, logicamente, o mesmo não possa ocorrer nos demais países capitalistas.

    É evidente que isso depende de uma série de fatores e condições, que não se encontram em todos os países. Tampouco acredito numa sociedade em que a igualdade seja plena —em que todas as pessoas tenham a mesma possibilidade de ganho e acumulação de bens—, uma vez que os seres humanos não são iguais, não têm todos a mesma capacidade de criação, inventividade e realização.

    Por isso mesmo, não se pode imaginar que todas elas contribuam na mesma proporção para o enriquecimento da sociedade.

    Tampouco tais diferenças entre os indivíduos justifica o nível de desigualdade que, com raras exceções, caracteriza o mundo em que vivemos.

    Essas são as razões que me fazem acreditar que, sem faca nos dentes e dentro do regime democrático, podemos alcançar uma sociedade menos desigual e menos injusta.

    ferreira gullar

    Escreveu até dezembro de 2016

    Cronista, crítico de arte e poeta.

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