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    Francisco Daudt

    Gratidão e fé

    DE SÃO PAULO

    16/04/2013 03h00

    Quer ficar pobre, mas pobre mesmo? Aplique todo o seu capital comprando ações da gratidão. São os papéis que mais rapidamente desvalorizam no mercado, com a vantagem de se tornarem negativos. Ou seja: você começa no lucro e acaba devendo.

    Há inúmeras ilustrações disso, aqui vão algumas. Quino, cartunista argentino da Mafalda, publicou nos anos 1970 quadrinhos retratando a chegada de um médico para atender uma criança doente. Os pais o veem como um anjo salvador quando ele põe a criança em bom estado. Na hora em que mostra a conta, já está visto como o "demo".

    Em "Hamlet", Shakespeare fez Polonius dar conselhos a seu filho que partia em viagem. Entre eles estava: "Não empreste dinheiro a amigo. Quem o faz, perde o dinheiro e perde o amigo".

    Conta a lenda que um monge budista caminhava por uma estrada quando foi esfaqueado pelas costas. Antes de morrer, conseguiu ver o rosto do assassino e comentar: "Curioso... Não me lembro de ter te feito nenhum bem na vida".

    Ainda há o sapo e o escorpião atravessando o rio, o homem que salvou a cobra do congelamento e outras histórias.

    O que há com a gratidão para provocar reações tão contrárias ao intuitivo? Logo na nossa espécie, que tem como seu melhor aspecto a capacidade de altruísmo recíproco, aquele fazer o bem com a esperança de algum retorno? (E não me venham dizer que o verdadeiro altruísmo não espera nenhum retorno, já que são Francisco de Assis, o ícone do altruísmo, rezava que "é dando que se recebe; é perdoando que se é perdoado").

    A encrenca mora no retorno. Se você faz algo por alguém que não pode lhe retornar com facilidade ou se o favor é tão grandioso que é uma dívida impagável ("Eu te dei o maior presente de todos: a vida! E agora você quer sair com aquela sirigaita?"), a tendência, já que ninguém ama um credor, é que você seja odiado, deletado, esquecido, e agradeça aos céus se não for assassinado.

    "O combinado não sai caro" e "boas contas fazem bons amigos" são princípios de troca muito claros e presentes na cultura americana. Que brasileiro responderá a um favor com "Fico te devendo uma", como eles fazem?

    De modo que, se um amigo precisa de dinheiro e não pode devolver a você, dê de presente, não de empréstimo. E se você quiser fazer o bem, deixe claro que o feito traz sua recompensa em si (e traz!), sem dívidas. O que vier (quando e se) é lucro, não pagamento de dívida.

    E a fé? Por definição, ela é a entrega amorosa a uma crença absurda, ilógica. Ressurgiu dos mortos no terceiro dia? Subiu aos céus? Nasceu de uma mulher que não conheceu varão? Grande doação é necessária para se acreditar nisso. Mais que isso, é preciso ter um dom, tão difícil que é.

    Às vezes, sua motivação não é o amor, mas o medo. Você viu os enlutados pela morte do ditador coreano? Aquilo é amor?

    Reparou como na fé existe expectativa de retorno? Nem sempre tão explícita como certos bispos a colocam: "Doe seu dízimo, quanto mais você doar, mais receberá de volta!" Mas, pelo menos, se livrar do inferno é esperado.

    Crer na gratidão, creio, é uma espécie de fé.

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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