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    Francisco Daudt

    Eufemismo

    11/12/2013 03h00

    Traduzido do grego, é "palavra de bom agouro" (palavra que deseja o bem). Torna mais leve algo mais difícil de lidar. "Contabilidade criativa", no lugar de "trapaça", tem sido muito usada.

    Como médico, acostumei-me a coisas horrorosas e nojentas, mas nunca superei a repugnância pelas secreções traqueobrônquicas (posso até falar delas assim, já "catarro verde" traz a coisa em si mais vívida, e me atrapalha).

    Em algum sentido, qualquer palavra é um eufemismo, pois sempre será mais branda do que a coisa em si. Nossa espécie desenvolveu a extraordinária capacidade de simbolizar. Não é que cães não a tenham, o Flap não pode ouvir "banho" sem se esconder debaixo da cama.

    Porém, os humanos levaram isso a um extremo tal que conseguimos lidar agilmente com ideias infinitas a partir de simples palavras.

    Palavras? O que estou dizendo? Manchinhas de tinta, como essas que você vê impressas, detonam um universo incalculável de imaginação e possibilidades.

    Baleia. Olhe de novo a palavra e pare para pensar na quantidade de imagens, histórias, sentimentos, raciocínios que ela te traz. Usei "baleia" porque nunca vi uma, só ícones representativos (fotos, filmes, desenhos, leituras). Só a conheço por símbolos.

    A capacidade de simbolizar não permite apenas um mundo de pensamentos, permite ao homem lidar com sua violência. Nossa espécie é a única capaz de violência e crueldade, já que um leão a dizimar os filhotes que não são seus, para fazer sua própria prole com a viúva do derrotado "macho alfa", está apenas seguindo seu instinto --não é cruel, não tem intenção. E faz, com isso, que a fêmea ovule!

    Nós o chamamos cruel, pois tirar os outros por nós mesmos (antropomorfizar) é uma característica básica do funcionamento de nossa mente.

    A civilização começou quando o primeiro troglodita, em vez de dar com o tacape na cabeça do outro, disse o primeiro palavrão.

    Uma cliente me contou, preocupada, que sua filha de dois anos aprendeu a cuspir em quem lhe desperta raiva. "O que ela fazia antes?". "Mordia". "Bem, então ela encontrou um insulto simbólico e menos danoso, a civilização está começando. Não se aflija, ela vai encontrar símbolos menos chocantes."

    Na extremidade oposta do eufemismo se encontra a obscenidade. Ela não tem a ver necessariamente com sexo, apenas é insultuosa por sua ostentação e por seu conteúdo hostil. Cabelos pintados de acaju em políticos carcomidos são obscenos. Simbolizam a hostilidade escancarada, o seu desprezo pela coisa pública e pela democracia, seu amor pela trapaça mal disfarçada.

    Você achou que eu pensava no brasileiro? Não, estava pensando num italiano...

    O mais curioso é que a obscenidade pode ser representada por símbolos eufêmicos. Se escrevo %, você pensará em percentuais. Mas já %#@&*, fará com que você imagine as piores obscenidades, uma vez que não há nada tão terrível (nem tão maravilhoso) quanto a nossa imaginação. Um fóbico não teme os aviões, mas as caraminholas tramadas por sua imaginação, diante deles.

    Escrevo isso tudo para expressar meu assombro pela maravilha do simbolizar.

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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