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    Francisco Daudt

    Espírito de corpo

    DE SÃO PAULO

    28/05/2014 03h01

    "Meu filho, seu pai –na maior parte do tempo– era um babaca", disse a mãe do meu genro escocês durante o funeral do pai dele. "Nenhum outro consolo foi maior do que esse, naquele dia", disse-me o genro. Pois dava conta do sentimento proibido de alívio que estava sentindo. "Como assim? Alívio pela morte do pai? Pela perda daquele a quem ele devia a vida? Que horror!", gritou o senso comum.

    De fato, uma das leis nunca explicitadas do senso comum diz que os pais são sagrados, que a eles só se deve amor e que o ódio aos pais é, mesmo em pensamento, crime grave pelo qual devemos sentir muita culpa. "Mãe é mãe": adoro essa síntese do senso comum. Repare que o enunciado é o mesmo de um axioma, a verdade autoevidente que não carece de explicação. Mais requintada é a falta de explicitação, é o fato de ser alusiva. Não dá para se discutir com alusões. Um suspiro e um arquear de sobrancelhas em sua direção. "O que há?" "Eu? Não falei nada..." Mas disse tudo sem precisar abrir a boca.

    Minha filha tem vívida lembrança de, aos seus seis anos, ter-me ouvido dizer que eu não gostava de uma prima. Foi uma epifania libertadora para ela: "Então a gente pode não gostar dos parentes?" A lei sagrada do senso comum estava desfeita por quem tinha autoridade para tanto.

    Por que é assim? Sabemos que há mães malucas e perversas, pais cafajestes, abusivos, indiferentes e mesmo estupradores (o estupro é uma forma não incomum da reprodução humana e um dos maiores atrativos para as guerras até hoje), e, no entanto... Mais uma vez: a natureza não está interessada na nossa felicidade, nem em outra coisa, senão na nossa reprodução.

    Há uma razão ancestral para isso: o espírito de corpo (preferi usar a tradução ao pé da letra da expressão francesa "esprit de corps", pois dá mais compreensão do assunto que "corporativismo", ou mesmo "espírito de equipe"). A ideia é que a pequena tribo precisava ser coesa para que não fosse destruída. Dissidências eram fragilizantes, portanto malvistas. Ela precisava ser como um corpo único: a ofensa a qualquer de seus componentes era uma ofensa à tribo toda, você era um dedo, não um indivíduo.

    Até hoje derivam do espírito de corpo duas pragas de difícil cura: o empastelamento familiar e o corporativismo. A primeira é mais notável nas cidades pequenas: "Fulaine, você sabe, é da família Du Tell, só podia ser daquele jeito mesmo..." A falta de privacidade, o meter-se na vida dos outros, julgar uma pessoa por ser de outra tribo são características principais das províncias (daí o termo "provinciano"). Não é de se espantar que qualquer um que se destaque na aldeia tome logo a providência de se mudar para um grande centro, onde o anonimato lhe permitirá ser um indivíduo (viver em grandes cidades é uma tendência mundial).

    A segunda praga: o corporativismo (todos querem "regulamentar a profissão para se defender"). Já levei pedradas nesta coluna por comentários "que ofendiam a classe dos não-importa-o-quê". Novamente: fechados em aldeias, o espírito de corpo fala mais alto que a razão.

    www.franciscodaudt.com.br

    francisco daudt

    Escreveu até dezembro de 2017

    Psicanalista e médico, é autor de 'Onde Foi Que Eu Acertei?', entre outros livros.

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